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domingo - 19/07/2020 - 08:02h

A tcheca

Por Honório de Medeiros

Nossa guia, em Praga, a quem tínhamos contratado desde o Brasil, via internet, para acompanhar nosso pequeno grupo – éramos nove – sorri algumas vezes, brinca outras, e é bastante acessível, o que a tornava diferente, aos meus olhos, da maioria dos seus compatriotas, bastante carrancudos.

Perguntei-lhe a razão desse estado de espírito. “O clima”, responde, em tom de brincadeira. Decerto aprendeu a brincar no Brasil, onde morou por seis anos, principalmente em Salvador, amou, casou, teve um filho com um baiano, e, em assim sendo, não poderia escapar incólume. Ela confirmou.Em português com pouco sotaque, embora às vezes errado nas declinações mais complexas dos verbos, ela atribui parcela considerável desse estado de espírito do seu povo à transição do comunismo para o capitalismo, e à fragmentação das expectativas dos tchecos em relação à Democracia.

“Antes”, diz ela, ajeitando os óculos “nerd” no nariz delicado, “nós não tínhamos liberdade para decidirmos nossas vidas, mas havia tranquilidade quanto ao presente e futuro: saúde, educação, moradia, trabalho…”  “Penso que as gerações anteriores sonharam com um mundo melhor no qual a ‘quase’ igualdade permanecesse, mas houvesse uma melhoria para todos nas condições gerais e, ainda por cima, liberdade”.

“O tcheco, de uma forma geral, é invejoso”, continua, assumindo um pouco o “physique du rôle” da antropóloga que disse ser, com diploma fornecido pela mais prestigiosa instituição universitária de seu País. Faço um parêntese para observar que escutei essa mesma observação, em Lisboa, feita por um português em relação a seus compatriotas.

“Mas é um invejoso justo: ele inveja o que o outro tem, querendo que todos tenham igual.” “Com o capitalismo, aos poucos está surgindo uma sociedade acentuadamente de classes, sem que os problemas mais antigos fossem resolvidos.”

Anete, esse é, em Português, o nome da nossa guia, espana a neve que vai caindo, minúscula, lentamente, por sobre seu elegante casaco azul escuro, nos diz que “no comunismo a divisão de classes era de outra forma, ou seja, a elite partidária possibilitava aos seus acesso à burocracia que lhes assegurava um status diferenciado.”

Já tínhamos feito um círculo em torno de Anete e a escutávamos atentamente. “Havia um contraponto natural à elite partidária comunista: os, digamos assim, intelectuais, que assumiram o controle após a queda do comunismo, e que se disseminavam, por exemplo, nas universidades secretas, onde se debatiam livros proibidos e se propunham alternativas para o modelo político existente.”

“Hoje há muitos saudosistas do comunismo. A Revolução de Veludo, na opinião deles, tirou as vantagens do comunismo e não acrescentou nenhuma do capitalismo…”

NÃO HÁ TEMPO PARA MUITA CONVERSA. Anete tem um trabalho a fazer, e o fez com competência, demonstrando conhecer, com profundidade, a história do seu povo. Levou-nos a lugares muito interessantes e nos contou, detalhadamente, o passado de cada um deles. Mas há sempre a hora de ir.

Quando os dias terminam, ela se vai pegar seu filho levando essa estranheza comovente de ter vivido em um País tão exótico, para os tchecos, quanto o Brasil. É assim que eles nos vêm.

Não somente. Além de ter vivido no Brasil, Anete amou um baiano de Salvador, e, do fruto desse amor, teve um filho que carrega consigo, uma mistura exótica de sangue brasileiro e tcheco, pelas ruas da República Tcheca. É estranho e comovente. Eu gostaria de lhe ter perguntado acerca de como aconteceu sua história de amor. Melhor não, pensei, e me contive.

Entretanto ainda lhe fiz uma última pergunta: você voltaria a morar no Brasil? “Não”, me disse. “O Brasil é muito bagunçado.” “Além do mais, este é meu povo, esta é minha história.” “Vou voltar lá muitas vezes; não quero que meu filho cresça sem conhecer suas raízes.” “Mas, não.” “Eu não voltaria.”

Seguiu Anete, após as despedidas, levando nossos cartões, pois nos disse que viria no final do ano ao Brasil, para as festas de aniversário do seu ex-sogro. Entrará em contato? Duvido. Entretanto, tudo é possível neste mundo de meu Deus. Afinal não aconteceu de uma tcheca vir a Salvador desenvolver um trabalho social, conhecer um baiano, casar-se com ele, e dele ter um filho?

Quem sabe ela não nos surpreenda?

Venha, Anete, é como lhe disse: nós a receberemos com imenso prazer. Quem sabe eu tenha coragem de lhe perguntar como foi sua história de amor no Brasil…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e da

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Odemirton Filho diz:

    Honório de Medeiros não decepciona. Nunca.
    Abraços.

  2. Ailson Fernandes Teodoro diz:

    Parabéns Honório!

    Mais um texto primoroso. Entre os intelectuais citados por Anete, que faziam contraponto à elite partidária comunista, estava Václav Havel, mundos líderes da Revolução de Veludo. Assumiu o Poder em Dezembro de 89; tendo sido o último Presidente da Tchecoslováquia e Primeiro Presidente da atual República Tcheca. 1989 foi um ano agitado no mundo inteiro. Artigo muito bom. Carregado de reminiscências. Valeu!

  3. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Excelente Crônica. Arrisco dizer que o amor baiano de Anete foi ardente, assim como a sua decepção amorosa, a ponto de não querer voltar…
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