• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 29/08/2010 - 12:19h

Carta-poema


Revivo aqui, 64 anos depois de escrita, a homenagem aos que a vida teve a graça e a malícia de colocar em meu caminho; o que ela reservou de melhor para que o dia sempre nascesse depois de todas as noites sombrias em que estivemos, os quatro, envolvidos desde que nascemos.

Fernando Sabino, meu amigo, as rosas estão frias
E estremecem nas hastes como uma voz de eternidade.
Não te contarei nada, ou quase nada.
Nada adiantarei, nem de meus lábios sairá o aviso ou a presença,
Nem o olhar entenderás – é tarde!
Na Rua da Bahia é tarde,
Faz tarde na Praça, nos bancos adolescentes, nas rosas
e nos jardins,
Nas fontes incansáveis é a tarde a marulhar o crepúsculo
entre flores.
Uma vez houve flores reais, não puras abstrações
de quem soluça.
Nesse tempo, Fernando, tudo era leve, calmo e exato.
A alma se alimentava da tempestade,
Mas a tempestade é a fome das águias invencíveis.
Nesse tempo, havia a glória e havia a morte.
A voz de meus amigos era quente de poesia,
Sua áspera ternura me inundava.
E de sua revolta saltavam os artigos,
As confissões, os diários, os poemas.
Lembra-te, Otto? A manhã no Parque,
Cintilante como uma aurora que nascesse muda,
Calma e grave, na agitação dos momentos supremos?
Os caminhos da terra eram ampliados pela dor que
nos possuía,
Conquistávamos o mundo e o perdíamos num sorriso
sem segredo,
Avançávamos no tempo e o tempo nos acolhia
distribuindo seus frutos,
Amargos ou doces, escorrendo uma experiência para sempre.
Nestas horas os compromissos com o futuro se enriqueciam
no sangue,
As palavras vinham carregadas de uma firmeza
que não há mais.
Nenhum atropelo, nenhum cansaço, nenhum amor.
Solitários e puros,
Nascíamos para a vida como quem recebe uma herança
e a despreza.
Tu, Otto, tinhas nas mãos o grande fogo sinaleiro,
Capaz de acender na noite a vasta bandeira das conquistas.
Carregavas nos lábios um sabor de aventura e de tédio,
E de teus braços esguios brotavam marujos acostumados
à peleja do mar.
Eras belo como uma flor rebelada,
Puro como um jato de aurora,
Limpo e profundo como a água onde os musgos envelhecem.
Nada te detinha, e nos cafés como no quarto eras
o mesmo punho aceso,
A mesma coragem e o mesmo heroísmo que te fazia
o querido entre todos,
O amado entre todos, o procurado, o puro.
Tua estirpe era a melhor e a mais lúcida,
Tua estrela a mais rubra, se bem que a mais frágil,
Tua voz a mais velada, se bem que a mais firme,
A mais clara, a mais carregada de esperança, a mais ouvida.
Nem um momento te arrastavas. O teu vulto negro
ainda se projeta
Como um grito de perenidade.
O teu capote encharcado de estrelas,
A voz rouca embebida de caminhos inesperados,
A fé no teu Deus, a confiança na Caridade,
o irrevelado amor pelos homens.
E tu, Fernando, príncipe encantado surgido entre lírios,
Pálido cavaleiro que se arrasta entre o blue
e uma sinfonia desesperada,
O incompreendido, o querido vulto mundano
que arrebenta nos salões
Como uma rosa de inverno, sufocada e pura ainda,
apesar da sevícia.
Teu sonho resplandece sempre, cavaleiro armado de prata,
Teu sorriso é uma fogueira, uma mensagem e um apelo.
De tua infância quieta tens a fronte pensativa
E as mãos enormes, interrogativas e espalmadas.
Os caminhos te legaram músculos longos e ligeiros,
Sabes nadar, medes a direção do vento e conheces
os caminhos do mar.
No entanto te perdes, amigo,
E tua bússola não é mais do que um catavento alucinado,
A tua segurança se refaz em passo de bêbado
e se amplia na aurora,
Teu vulto se desenhando nítido e inesquecível
entre as árvores.
Nada sabes, e és a sabedoria, o consolo e a palavra.
Te lembras, amigo? Na bicicleta de fogo varamos
a madrugada intraduzível,
Consultamos o frio dos astros e nos precipitamos
enlouquecidos.
Nossas confidências venciam o vento e caíam por terra
como um fruto farto.
Então eras o príncipe comandando o seu reinado,
Eras o sábio penetrando os arcanos da vida,
Eras o irmão, carne da mesma carne, raça da mesma raça,
Superando o silêncio e a morte.
E tu, Paulo, dor de minha ternura, ternura desta mágoa,
Tu pequeno, ardendo entre ciprestes
de uma cidade desconhecida.
Tu que carregas os nossos destinos e por isso repousas,
E por isso te deitas na relva, fixando o sol de fogo
Que oscila sobre a tua amorável cabeça.
És triste, Paulo, e por isso te compreendo
Apenas nas horas em que a madrugada fertiliza as encostas.
És profundo e grave, e por isso o teu gesto às vezes dói
Como quem se despede e vai para longe.
És generoso mas tímido, tens medo
E por isso há em ti a contextura dos heróis,
Dos que se arriscam, dos que não temem,
dos que se precipitam
E dos que se perdem.
Ainda embarcarás. Ouço já o teu grito
comandando a largada – e fico triste.
Violarás portos sem nome e te renderás escravo.
Depois, a vitória. Pois a vitória está contigo,
No teu gesto de desmedida loucura,
Na tua roupa de marinheiro,
na tua vocação de esquecimento,
Na tua voz que despreza para amar numa ardência secreta,
No teu jeito de olhar, esquivo movimento
de quem se furta ao efêmero
Para se entregar após, fecundo e grande,
ao tempo sem tempo ou território.

Para vocês três, o coração cheio de ternura de sempre.

Gui.

Hélio Pellegrino (1924-1988) – Cronista, poeta e psicanalista mineiro

* O texto é uma homenagem de Pellegrino aos seus três amigos-escritores, mineiros como ele e, inseparáveis, Otto Lara Rezende, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos.

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Categoria(s): Blog

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