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domingo - 23/12/2018 - 11:37h

Concentra̤̣o РVoc̻ consegue?

Por Honório de Medeiros

A ciência começa a comprovar algo que o senso comum já constatara: estamos ficando cada dia mais limitados na nossa capacidade de concentração, principalmente em tarefas de natureza abstrata, tal qual ler um livro.

Em “A Civilização do Espetáculo” Mário Vargas Llosa especula, a esse respeito, por vias transversas, enquanto descreve a banalização da cultura contemporânea na medida da nossa opção pelo entretenimento ligeiro, de conteúdo pobre e forma atraente, em detrimento da complexidade da anterior herança cultural comum.

Não aponta causa específica para o fenômeno, mas alude, obliquamente, à onipresença imperiosa, por trás dos panos, da incessante busca pelo lucro.

Em outra face da questão o filósofo americano Michael J. Sandel, autor do aplaudido “Justiça” menciona, em “O que o Dinheiro não Compra”, corroborando Llosa, o poder avassalador do mercado a dominar tudo e todos, corações e mentes, e suas consequências no universo moral.

Quem diz mercado, diz lucro.

Daniel Coleman, famoso psicólogo americano professor em Harvard, criador do conceito de “Inteligência Emocional”, pondera acerca do déficit de atenção cada vez mais profundo em nossa civilização, decorrente da escravidão às redes sociais, a originar uma demanda, no futuro, instaurada pelo próprio mercado, de em relação a todos quanto sejam capazes de se concentrar em tarefas de médio e longo prazo.

E se quando o mercado reagir a catatonia (alienação) já estiver plenamente estabelecida?

Acerca do fenômeno da volatilidade das percepções, causa e consequência desta atual fase do capitalismo, discorre Bauman com excepcional clareza em suas obras, de caráter mais filosófico que sociológico. Somos uma sociedade evanescente, diz ele, na qual a transitoriedade de tudo, cada vez mais acentuada e veloz, será o único fator permanente.

Ou seja, mercado, lucro, redes sociais potencializadoras, volatilidade, déficit de atenção, tudo está interconectado.

Ainda em outra face – são mesmo muitas, para a mesma realidade – Moisés Naím especula acerca da fragmentação do Poder, como o conhecemos, em consequência dessa realidade volátil, evanescente, permanentemente transitória, efeito, entre outras coisas, dos meios por intermédios dos quais ela é alimentada e cresce, ou seja, por exemplo, a rede social e a interconectividade.

O que estaria por trás de tudo isso? Como chegamos a esse patamar? Que teoria explicaria esse fenômeno em sua inteireza?

A menção, feita por Llosa, Sandel, tanto quanto Michel Henry e Debord, estes aqui ainda não citados, mas que também especulam acerca de faces dessa mesma questão social, e a onipresença do mercado poderia dar razão ao Marx sociólogo, embora não a aquele do materialismo dialético. Ou à teoria da seleção natural de Darwin, do qual o capitalismo seria uma consequência, digamos assim.

Nesses casos bem vale o dito atribuído a Proust: “o tempo é senhor da razão.”

Ressalve-se, apenas, que as tentativas para conter a alienação, quando e se acontecerem, promovidas seja pelo próprio mercado, seja pelo Estado, poderão encontrar um status quo irreversível. Isso acontecendo, tendo como causa um brutal nivelamento por baixo em termos de capacidade de apreensão, de cognição, de capacidade de pensar em termos complexos, perdemos todos. Concretamente viveremos a realidade das escolas no Brasil, hoje: cada dia mais alunos, cada dia menos conhecimento.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Temo Proust quando diz ” o tempo é senhor da razão”.
    Sendo a atualidade o tempo referido, me apavora. Sendo o futuro o tempo referido, apresentando as sequelas deixadas pelo tempo que passou, me assombra.
    Hoje, no meio de minha sala, presente de Noel, há uma mesa de ping-pong. No meio de minha sala, há uma mesa de ping-pong. E vai ficar lá armada, acabando com a decoração e ocupando muito espaço. Preciso, desesperadamente, dessa mesa. Em pleno Natal, fizemos torneio familiar. Por que preciso da mesa? para atrair meu neto de dez anos que está ligado num jogo eletrônico com outros três colegas. Se deixarmos, passa a noite. Fones nos ouvidos, conversando alto, atento ao jogo como se estivesse noutro planeta.
    A mesa pode ser a salvação para tirá-lo da modernidade e trazê-lo de volta ao prazer das brincadeiras “antigas”. Se o tempo atual é o senhor da razão, a razão formará alienados. Se não houver a vigilância nessa prática absurda, intervenção, proibição ou, pelo menos, restrição no horário, teremos jovens apáticos, vivendo noutra dimensão. Se o tempo senhor da razão for o futuro, se não modificarmos esse tipo de comportamento, não teremos um mundo normal. Teremos robôs que não leram livros, que não se dedicaram aos estudos, teremos máquinas vazias.
    Investindo no futebol, na natação, na sala com mesa de ping-pong, na leitura premiada, nas redações.
    Só assim evitaremos que a modernidade engula nossos netos, filhos, descendentes. A hora de intervir é essa, senão o tempo será senhor da razão.

  2. Disraeli Davi Reinaldo de Mour diz:

    Parabéns pelo texto, Amigo! Rebuscando autores mais sóbrios nos permite melhor avaliar a percepção da realidade!!

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