• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
sábado - 22/01/2011 - 12:51h

Don Fructuoso e Padre Sátiro


Agora a saudade é no sentido inverso. Lá, em Salamanca, sentia falta de nosso calorão. Aqui, em Mossoró, dos dias amenos da primavera. Lá, salivava ao lembrar o gosto nordestino do cuscuz e da tapioca.

Aqui, já sinto falta da tortilha de batatas e do presunto ibérico. Lá, minha memória olfativa, vez por outra, me fazia lembrar o cheiro das essências que, invariavelmente, sentimos ao passar próximo ao Mercado Central.

Aqui, sinto imensa falta das caminhadas pelas margens do Rio Tormes e dos passeios pela Plaza Mayor, onde não entrar em um dos seus antiguíssimos bares, para um café, ou um chocolate quente, é praticamente irresistível.

Ao falarmos na Plaza Mayor – onde tudo acontece –, é inevitável não lembrarmos de um ótimo show de Gilberto Gil que ali assistimos, e, principalmente, não recordarmos alguns “cafés especiais”, como, por exemplo,  um proporcionado pelo professor Alfredo Alencart, onde fomos apresentados à figura ímpar do pensador, tradutor e humanista Luis Frayle Delgado. Vocês não imaginam a despretensiosa e descontraída aula que me foi dada.

Aliás, minha dívida com o professor Alencart é altíssima, creiam-me. Ele, ocupadíssimo professor de Direito de Trabalho, além de profundo conhecedor da literatura ibero-americana e luso-brasileira, semanalmente reservava uma hora do seu muito ocupado tempo, para gastar com este humilde mossoroense.

Ainda na área literária, posso enumerar outras inestimáveis amizades conquistadas: Hugo Milhanas, poeta português, gente melhor que dinheiro achado; Fernando Gil, professor de Sociologia da Universidade, poeta maior. Sim, não posso esquecer o amigo Paco Durán: o espanhol que mais conhece música popular brasileira (ele sempre protesta quando digo isso, mas é a pura verdade).

E o que dizer da convivência na própria Faculdade de Direito? Colegas do mundo todo, nclusive, claro, brasileiros. O cearense Nivardo Melo, o paraibano Hugo César, o paulista Gustavo Silveira, o português André Ventura, o mexicano Abelardo González. E os professores?

Alguns de extrema simpatia. Mesmo correndo o risco de eclipsar nomes, cito três: Zulima Sánchez, Pedro Nevado e Rafael Bustos. Os dois primeiros, de Direito Administrativo, e o terceiro, Constitucional. Ela, Zulima, minha atenciosa orientadora… Cada qual com a produção acadêmica mais “espritada do mundo”, como diria meu saudoso pai.

E Don Fructuoso e Padre Sátiro, que dão título a estas mal traçadas, onde entram?

Conto-lhes um “segredo de polichinelo”: nos primeiros dias de Salamanca, frequentando algumas igrejas, nessas visitas de curioso olhar histórico, quase sempre assistíamos à missa dominical. Em quase todas, as homilias eram conservadoras. Boas pregações, admito, porém nesse tom.

Quando fomos à paróquia do bairro em que vivíamos, cuja padroeira é Nossa Senhora da Conceição – para eles, “La Puríssima”–, causou-nos verdadeiro encanto a preleção do pároco, Don Fructuoso Mangas.

Honestamente, nem saberia definir a homilia de Don Fructuoso. Misto de sacro e poético, numa fala sem soberba nem pedantismo. E o mais impressionante é que, em determinados momentos, e temas, revela-se altivo e questionador, como se fora um jovem revolucionário – sem ser panfletário –, chegando mesmo a transmitir “uma ira santa”, para usarmos uma expressão do nosso cancioneiro popular.

Acrescente-se: tudo recheado por um leve e proporcional bom humor.

Notei que um chileno, colega de doutorado, também não perdia uma missa. Em um encontro pelos corredores da Faculdade, comentei que sempre o via aos domingos na “Puríssima”.

Ele disse que a frequentava por conta da homilia do sacerdote e que, quase sempre, ia às lagrimas. Estranhei, pois considerava os sermões de Don Fructuoso mais para alegre do que para triste.

Ele disparou, nocauteando-me: “Não choramos somente ao escutarmos coisas tristes; também emocionamo-nos com a beleza e profundidade das palavras”. Pano rapidíssimo. Convergimos no sentido de achar que aquelas alocuções deveriam ser gravadas, transcritas e divulgadas.

Bem, depois da quarta ou quinta missa, criei coragem e fui à sacristia. Identifiquei-me e disse que gostaria apenas de parabenizá-lo por tão belas homilias, e que, a mim, eram por demais agradáveis. Don Fructuoso riu e devolveu-me em tom de blague: “Agradável de escutar é o seu comentário.”

Rimos juntos. Daí a um café, em nosso apartamento, foi um pulo. Tarde-noite agradabilíssima, com ele a perguntar coisas do Brasil: culinária, música, política, poesia…

Com o passar dos dias, fui chegando à conclusão de que Don Fructuoso tinha muito em comum com nosso estimado padre Sátiro Dantas. Se não, vejamos: Os dois conservam um espírito jovial, apesar de já contarem mais de quatro décadas de sacerdócio. Ambos possuem sólida formação cristã e humanista: Padre Sátiro, educador de mão cheia e atuante comunicador, ainda hoje na labuta diária de seu programa de rádio; Don Fructuoso, também educador e moderno comunicador, mantendo, inclusive, um site intitulado “Al rostro de Dios”.

Padre Sátiro sempre a nos trazer Santo Agostinho, traduzindo-nos a profundeza do pensamento desse doutor da igreja; Don Fructuoso, a nos mostrar como os preceitos de São Paulo Apóstolo são amplos e atuais.

Perguntado em uma entrevista sobre um “personagem” com que ele, Don Fructuoso, tinha identificação, a resposta dada foi mais ou menos assim: “Identifico-me com um personagem que desconhecemos o nome, mais admiramos muito o feito… o moço que, anonimamente, doou os cinco pães e os dois peixes, para que o milagre acontecesse”.

Cá de minha canhestra visão, entendo que padre Sátiro e Don Fructuoso doam, diariamente, pães e peixes, multiplicados em forma de ensinamentos.

David de Medeiros Leite é professor da Uern

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Categoria(s): Nair Mesquita

Comentários

  1. Lima Júnior diz:

    Belíssima crônica. Parabéns pelo escrito, escreves com maestria. Ou seja, proporciona uma imaginação vivaz que anima o leitor.

  2. Honório de Medeiros diz:

    Excelente crônica. Parabéns, David!

  3. Genário Freire diz:

    Emocionante….beleza de crônica…..simples e profunda

  4. Valéria Bulcão diz:

    Mossoró chuvosa….Fiquei com vontade de ouvir Don Fructuoso no adro da Catedral de Santa Luzia. Viva !

  5. Ivana Linhares diz:

    Bravíssimo David!!! Que bela crônica!

  6. Francisco Rodrigues da Costa diz:

    Amigo David.
    Lá não tenho internet. Vou levar essa crônica para saboreá-la sob o alpendre, olhando o Porto Ilha, de Tremebé a Grossos, e, para dar um toque todo especial, contemplando a torre da igreja de Nossa Senhora da Conceição, a “Lá Puríssima” de cá. PARABÉNS por essa maravilha. Abrace Vilani, Jessé e Irene e Paco e Asun. Chico

  7. Fructuoso diz:

    Soy el Fructuoso de la crónica, llena de amistad y de humanismo, de David. Le agradezco sus atenciones más altas y numerosas que las cualidades que él ve en mí. La verdad es que sus reconocimientos y sus alabanzas tampoco me extrañan, porque semanalmente le paso un “jamón de bellota” de Guijuelo (el mejor presunto de España), tapioca importada y otras menudencias por el estilo. Bueno, por si acaso, aclaro que esto es broma (aquí a una broma así la llamamos “brincadeira”, del gallego). Y reitero mi agradecimiento a David y él sabe que le aprecio y desde aquí le felicito por su SUMMA CUM LAUDE en su Doctorado por Salamanca (tuve el honor y el gusto de asistir esta mañana a la Defensa de su Tesis). ¡VICTOR! (la expresión con la que en las peredes de Salamanca se saluda a los nuevos doctores desde hace 600 años. Gracias por too, David, y en horabuena.

  8. Mário Ilo Garcia diz:

    Parabenizo-te pelo novo título (Doutor), e pela bela crônica que escreveste. Genial !

  9. Fátima Leite diz:

    Belíssima e emocionanate crônica. A minha imaginação vai além do escrito…na Igreja “LA PURISSIMA”, para ouvir, refletir e com certeza, ficar emocionada ouvindo Don Fructuso. Parabéns meu irmão.

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