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domingo - 25/04/2021 - 09:30h

Fome dói, senhoras e senhores

Por Marcos Ferreira

Sei que dirão, decerto poucos, visto que meu círculo de leitores é tão largo quanto o buraco de uma agulha, que estou politicando. Que digam. Não tem problema. É isso mesmo. Somos essencialmente políticos, frase de cujo autor (perdoem minha memória de Sonrisal em copo d’água) não recordo.

Hoje discorrerei sobre esta área pantanosa. Pensem o que quiserem. A verdade, senhoras e senhores, é que tudo está impregnado de política. Há política em todos os âmbitos e esferas; política no seio das famílias, política nas artes, na literatura, política nos relacionamentos amorosos, nas uniões interesseiras, no âmago das religiões e, lógico, no pior de todos os segmentos: a zona partidária, onde o percentual de percevejos sociais travestidos de mulheres e homens públicos é quase metastático. Contudo (ouso afiançar) existem raras e honrosas exceções.Fome, mãos com pão, flagelo, pobrezaTodo este circunlóquio é para lhes dizer, como na canção do Chico Buarque, que “a coisa aqui tá preta”. Mas não estou contando novidade alguma e o verso do compositor soa redundante. Acrescento, e sem conotação racial, que a coisa está pior que preta. Posto que agora, minhas senhoras e meus senhores, a Coisa (com inicial maiúscula) tem olhos verdes e esbugalhados. Ou seriam azuis? Digamos, à maneira dos poetas parnasianos, que os olhos são garços, agateados.

Sim, meus gentis e parcos leitores, aqueles são os olhos demoníacos de uma criatura sem compaixão, empatia, escarnecedora da penúria em que vive grande parcela dos seus compatriotas. Tais olhos, introjetados de peçonha e desamor, têm sido maléficos, deletérios a este “país tropical, abençoado por Deus”, como diz um outro compositor carioca. Olhos que secretam o mal.

Hoje, infelizmente, o povo humilde e carente desta pátria de chuteiras voltou a comer o pão que o diabo amassou, conforme o ditado. Ou, em muitos lares, nem isso. Porque o preço do pãozinho, mesmo aquele da véspera, está pela hora da morte. Os víveres, de um modo geral, estão nos custando os olhos da cara. Isto sem falarmos nos combustíveis automotivos, na pena d’água, na tarifa de luz, no gás de cozinha. Este último, com o preço tão inacessível, mais parece um satélite doméstico na estratosfera da baratinada economia brasileira. Muitas famílias retroagiram e estão cozinhando à lenha. Quando há o que cozinhar, naturalmente.

A mendicância tomou os canteiros, ocupa logradouros, faz blitz nos semáforos, estira a mão súplice: “Uma ajudinha, pelo amor de Deus!” São pessoas desvalidas, privadas da mínima condição de subsistência e dignidade, sofrendo humilhações, curtindo fome. E fome dói, senhoras e senhores. Maltrata sobremodo, faz definhar o corpo quanto o espírito, inviabiliza projetos, sonhos.

Sem coitadismo, sei do que estou falando. Nada conjecturo ou presumo. Digo o que digo com propriedade, conhecimento de causa. Não devemos nos envergonhar da nossa história e origens. Não se estas não são motivo de vergonha. A fome, que sempre foi dramática entre nós, ressurge ainda pior. Muito pior. Recrudesceu, retornou à pauta da grande imprensa, agravada. E o pivô desse agravamento, de olhos esverdeados, faz pouco-caso do infortúnio dos miseráveis.

Pensando melhor, creio que a referida Coisa merece receber o artigo masculino singular. Logo, feita esta mutação de gênero, temos no Brasil, aboletado nos píncaros do poder central, o Coisa, ser malévolo que se harmoniza de forma perfeita com o adjetivo ruim. Destarte, outra vez reformulando a nomenclatura do dito-cujo, temos aqui o Coisa-Ruim, palavrinha composta e bem mais apropriada. Não se trata de um batismo original, considerando que esta é uma das várias definições atribuídas ao demônio supremo Satanás, ou Lúcifer, como quiserem.

ENTÃO, SENHORAS E SENHORES, de paletó e gravata caros, olhos garços, esbugalhados, arma no cós e enxofre na língua, mas sem o clássico rabo com seta na ponta nem chifres (não que se saiba), o Coisa-Ruim lançou o Brasil num precipício econômico e social que resulta no estarrecimento e perplexidade do mundo todo. Acho até que o famoso letreiro do “lábaro estrelado” precisa sofrer uma constrangedora atualização, modificando-o para “desordem e retrocesso”.

Olhemos à volta, minhas senhoras e senhores. Mas olhemos sem paixões políticas nem ranço, sem os antolhos do partidarismo de esquerda ou direita, sem a retórica do petismo ou do lulismo. Contemplemos as axilas de pontes e viadutos por toda parte deste país, as calçadas das lojas durante a madrugada, sob marquises e toldos. Aí veremos, senhoras e senhores, os nossos semelhantes, uma miríade de sem-teto, quantidade ora duplicada, senão triplicada. São aquelas pessoas engolidas pela desigualdade social e pelo modus operandi desse governo irascível, antidemocrático, truculento, apologista da ditadura e intimidador de jornalistas.

Perdoem a vulgaridade da expressão, mas o brasileiro está vendendo o almoço para comprar o jantar. Logicamente estou me referindo às camadas baixa e subterrânea do nosso povo. Muita gente que se encontrava em cima, ou não muito embaixo, desceu, está ao rés do chão.

Outros mudaram daí para um subsolo financeiro, ameaçados pela miséria absoluta, na iminência de perderem seus lares e passarem a coabitar os sovacos de pontes e viadutos, expostos sob marquises e toldos, disputando espaço com aquele mundaréu de sem-teto a que me referi.

Além do caos da pandemia, cujo número de vítimas no Brasil pelo coronavírus logo atingirá os quinhentos mil mortos, padecemos com o flagelo de uma política voltada para o benefício de ricos e ricaços.

A gente humilde, senhoras e senhores, está ao deus-dará, de pires na mão. Falta-lhes o básico do básico. Raimundo vendeu o televisor para comprar comida, pois ele e a esposa estão desempregados e têm duas crianças entre os oito e dez anos de idade. Maria Lúcia, jovem mãe viúva, desempregada e também com duas crianças para oferecer alimento, vendeu o guarda-roupa e o sofá.

Sim, senhoras e senhores, as famílias pobres deste grande país estão entre a cruz e a espada, de bolsos e geladeiras vazios.

Aqui no meu subúrbio, a dois quarteirões da minha casa, conheço outro casal, este com três filhos pequenos, ele auxiliar de pedreiro e ela cuidadora de idosos, ambos na mesma situação de desemprego, que ilustra muito bem este cenário aflitivo. Topei com ambos na última sexta-feira, por volta das oito horas, quando fui à calçada colocar o lixo, pois era o dia do caminhão da prefeitura passar realizando a última coleta da semana. Então o referido casal me abordou.

— Bom dia, patrão! — disse o homem.

— Bom dia! — respondi de imediato.

Imaginem uma coisa dessas, senhoras e senhores: súbito fui elevado à categoria de patrão. Somente pela força das circunstâncias difíceis por que passam aquelas pessoas. Interromperam a trajetória a fim de saber se eu não gostaria de mandar limpar meu quintal e o mato que brota abundantemente do meio-fio e das várias lacunas distribuídas ao longo do piso avariado da minha calçada.

Em tempo, senhoras e senhores, informo que o casal estava guiando uma pequena carroça, puxada por um burrinho magro.

— Faço o serviço por um preço bom.

— E qual seria esse preço bom?

— Barato, senhor: cinquenta reais.

Estimo que o homem, de barba e cabelo crescidos, tenha algo em torno dos quarenta anos de idade. Exibia no rosto afogueado os reflexos de uma vida severina, como no poema do João Cabral de Melo Neto.

Conheço aquele cidadão de vista, como já mencionei. Especialmente porque uns três anos antes o vi literalmente com a mão na massa, trabalhando com um pedreiro que meu vizinho da frente contratara para realizar uma reforma em sua residência. Observei que naquele tempo o hoje carroceiro possuía um carro. Veículo popular e bem usado, é verdade, mas um carro. Estacionava o seu transporte margeando a minha calçada, livrando só o espaço do meu portão maior.

— Tudo bem. Pode fazer o serviço.

— Graças a Deus! Vou deixar minha esposa em casa, aqui perto, e volto logo. Estávamos há dias sem ganhar um tostão.

— Eu me lembro de você trabalhando como auxiliar de pedreiro, aí na casa da frente. Você parava seu carro aqui do lado.

— Pois é. A situação tá complicada; o ramo de servente de pedreiro caiu muito. Tive que vender o carro e comprei essa carroça.

Antes do meio-dia, usando máscara (solicitação minha) e dispondo de uma enxada, uma pá e um vassourão de piaçava, ele deu cabo da limpeza. Pôs todo o mato sobre a carroça para despejá-lo não sei onde.

Limpar quintal, assim na enxada, é tarefa que hoje não posso mais abraçar devido ao meu espinhaço talvez acometido por uma hérnia de disco. Paguei os cinquenta dinheiros cobrados e Francisco (eis o nome do rapaz) pediu que eu agendasse o número do celular dele para alguma outra necessidade.

— Obrigado, patrão! Até a próxima.

— Não precisa agradecer, Francisco.

Não posso contar vantagem, devo salientar, mas é assim que muitos se encontram: às cegas, lutando pelo pão de cada dia.

Enquanto isso, na Sala de Injustiça do Palácio do Planalto, os Superamigos da verba pública, capitaneados pelo Coisa-Ruim, deitam e rolam. Quanto à fome do povo, apenas zombam e gargalham feito o Coringa.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Rocha Neto diz:

    Dói, e muito caro Marcos. Só sabe quem ja na pele e corpo sentiu tamanha agressão física, psicológica e espiritualmente. É tão dilacerante o sofrer da fome, que o próprio Cristo Jesus quando ao mundo veio pagar pelos nossos pecados, fez opção de sofrer na sua própria pele tamanha dor e humilhação. Foi por iniciativa d’Ele ? Sim. Pois queria deixar o exemplo que seria a fome, um dos piores castigo para o corpo e alma do homem.
    Pena que os homens não enxergam a realidade, principalmente os que vivem na casta e píncaros do poder público, e veja que muitos dos que alí se encontram estão no nanismo da fome espiritual, esta é a pior para o ser humano, pois muitos dos que se encontram com o estômago farto, não tem o alimento principal (que é o moral) para gerar energia suficiente para levantar o seu pescoço e mostrar o seu rosto. O corpo pode estar nutrido, enquanto que sua alma chora e grita pela falta de alimento espiritual e moral.
    Marcos, sua Crônica de hoje merece uma estatueta do Oscar. Parabéns!!
    P.S. Já mandei duas estatuetas hoje, uma p Carlos Santos, outra pra Edilson Leite, e a terceira fica contigo. Que Deus te abençoe com saúde e paz.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu caro Rocha Neto,
      Muito bom saber que tenho você entre os leitores de meus escritos neste prestigiado espaço. Um estímulo a mais para sustentar essa peteca de escrever uma crônica semanal e poder compartilhá-la com o fiel e diferenciado público do Carlos Santos. A responsabilidade é grande, mas tem sido gratificante.
      Um grande abraço e uma ótima semana para você.
      Marcos Ferreira.

  2. Inácio Augusto de Almeida diz:

    E esta fome tão dramaticamente relatada teve origem no governo que promoveu a corrupção maior da história deste país.
    Quem ja esqueceu dos empréstimos, na verdade DOAÇÕES, a Cuba para construção de um porto e a Venezuela para a contrução do metrô de Caracas?
    E o desperdício com a construção de campos de futebol que só serviram para mascarar a corrupção?
    Não é justo atribuir a miséria em que o Brasil está mergulhado apenas ao governo atual.
    O que mais desgraça este país são castas que se acostumaram a privilégios impensáveis, estatais que não passam de cabides de emprego, onde a meritocracia inexiste e os cargos de chefia são loteados entre políticos que indicam afilhados despreparados; e a IMPUNIDADE que estimula a corrupção. A tudo isto some a apatia de um povo que não consegue mais se indignar quando sabe que uma Câmara de Vereadores comprou alho, coentro, cebola, tomate , pimentão, ovos etc, gastando nesta compra mais de 143 mil reais.
    Não bastasse todas estas desgraças, aparece a Covid-19.
    Só sairemos desta situação quando o povo tomar consciência de que o poder a ele, povo, pertence.
    Recolocar no poder políticos comprovadamente corruptos ou manter incompetentes gerindo um país como o Brasil, só resultará em mais fome.
    Os franceses deram o exemplo de que é possível sair da miséria.
    Tudo só depende de não aceitarmos mais o falso dilema.
    Chega de ter que escolher entre o que furta ou o desastrado.
    Rezar para que Deus mande alguém é tudo o que nos resta.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Inácio Augusto de Almeida,
      Obrigado pelo seu bem-vindo e pertinente comentário. Você levantou, sem defender o desgoverno atual, pontos importantes sobre o caos econômico e sanitário em que o País se encontra, sobretudo no que se refere à malversação dos cofres públicos na esfera federal. Coisa que não é de agora, claro. Muito embora, a meu ver, a quadrilha que hoje está no poder é ainda pior (muito pior) que a de antes. Além disso, prezado Inácio, como você destacou, existe o velho e revelho problema da massa votante, que possui a infeliz vocação de eleger caricatos salvadores da pátria, mitos apologistas de milicianos e falsos Messias. Como o povo costuma dizer, só Deus na causa.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

    • Pedro Rodrigues diz:

      Foi exatamente no governo apontado que o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, graças ao Fome Zero. Retornamos no governo Temer, e nos aprofundamos com o caos econômico e isolacionismo global, somados à total inação diante da pandemia do governo atual.

      Mas, quem tem boca (ou dedos), diz o que quer. Né?

      • Marcos Ferreira de Sousa diz:

        Caro Pedro Rodrigues,
        Antes de mais nada, agradeço por tê-lo aqui como leitor e participantes das discussões levantadas neste prestigioso espaço. Assim como você, reconheço a gigantesca importância do programa Fome Zero, entre outros não menos relevantes implantados pelo, sobretudo, governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Se existiram falcatruas ou não na gestão dos petistas e auxiliares, essa é outra discussão na qual prefiro não me envolver, muito embora eu creia que nenhum partido é cem por cento imaculado. Está longe disso. O que não se pode negar, contudo, é o grande e inédito serviço que o ex-presidente Lula, com seus erros e acertos, prestou à imensa camada pobre e desvalida deste país. Tiraram o Lula da disputa presidencial, através de manobras sórdidas do ex-juiz farsante Sergio Moro, para colocar o Genocida que aí se encontra desgovernando o Brasil a partir daquele covil em que se transformou a Casa de Vidro do Planalto Central.
        Cordialmente,
        Marcos Ferreira.

  3. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    E isso mesmo MARCOS FERREIRA, o carroceiro representa a política no ato de respirar, de sentir, de olhar, de caminhar, de capinar e de buscar meios de sobreviver face a politica da miséria e do caos meticulosa, criminosa e malandramente ENGENDRADA e tornada realidade por uns poucos de olhos verdes esbugalhados, em detrimento dos interesses da maioria.

    Não se trata mais de observarmos classes sociais..pelo aspecto conceitual de classe média ou não..trata-se de demarcar os que efetivamente em sua grande maioria, ESTÃO…na miséria absoluta ou não.. !

    A realidade posta..e de maneira tal aviltante que os votantes do COUSA/RUIM, em sua grande maioria ENVERGONHADOS DO ATO CRIMINOSO DA SUA DIGITAL, se tornaram fantasmas reféns das sua próprias idiotices, bizarrices e mentiras políticas, ideologicas e eleitorais!

    Oxalá nosso Brasil acorde a tempo e modo possíveis de sairmos dessa monumental encalacrada coletiva… que nos colocou a imprensa, o o judiciário e o parlamento brasileiros em aplicada e abjeta obediência aos que detém o poder real aqui e algures, especialmente MADE USA…!!!

    Um baraco
    FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO
    OAB/RN.7318

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro Fransueldo Vieira de Araújo,
      Você elencou vários outros pontos nevrálgicos dessa problemática político-social. Faço minhas suas palavras. No fim das contas, portanto, quer por força de manipulação ou ignorância, o pau quebra mesmo é nas costas dos brasileiros mais necessitados, num modelo de desgoverno federal em que o pobre fica mais pobre e o rico enriquece ainda mais.
      Um forte abraço,
      Marcos Ferreira.

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