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domingo - 21/04/2024 - 12:00h

Limítrofe

Por Bruno Ernesto

Foto do próprio autor da crônica

Foto do próprio autor da crônica

Até que ponto a degradação humana lhe afeta?

Lembro de um filme alemão chamado Das experiment (A experiência), lançado em 2002 e dirigido por Oliver Hirschbiegel, o qual reproduz um experimento realizado no ano de 1971 na universidade de Stanford.

Nele, vinte voluntários são divididos em dois grupos, sendo oito deles carcereiros e demais prisioneiros.

O experimento consistia em observar o comportamento dos dois grupos simulando uma prisão.

Uma semana após o início, o nível de violência e degradação humana foi tão surpreendente, com uma total falta de controle dos voluntários que faziam o papel de carcereiros, que esses passaram a praticar todos os tipos de violência contra os voluntários no papel de prisioneiros, o que forçou sua interrupção.

Quando falamos de degradação humana pela violência física, estranhamente, ela desperta mais interesse e é incrivelmente mais atraente para as pessoas; embora muitos não admitam.

Entretanto, há uma degradação humana, muitas vezes silenciosa, porém tão cruel e, por vezes, igualmente mortal.

Vez ou outra vemos nos noticiários matérias acerca da situação econômica no Brasil e mundo a afora. Invariavelmente, não muito animadoras. Mas a vida segue.

Há dois autores que escreveram sobre privações e dificuldades em dois sistemas político-econômicos distintos e que, ainda hoje, geram grandes discussões: capitalismo e socialismo.

A diferença básica entre suas obras, é que uma, tal qual o filme, foi um experimento; e outra, foi pura realidade.

Conhecido pelo seu famoso livro 1984, o ingglês, George Orwell, uma obra tanto distópica quanto satírica, iniciou sua vida literária com o livro “Na pior em Paris e Londres”, escrito na década de 1920, quando largou tudo para iniciar sua vida literária, entretanto, só publicado em 1933.

A obra foi idealizada por Orwell para relatar a situação limite de pessoas com dificuldades financeiras. Uma população invisível.

Conta a vida das mais variadas pessoas. Desde sapateiros, pedreiros, cozinheiros, trabalhadores braçais, desempregados, até estudantes universitários, demonstrando que a ruína financeira, a miséria e o desamparo material, deterioram rapidamente qualquer perspectiva, quando se está extremamente necessitado, alterando e, repetidamente, interrompendo planos, ainda que seja por um prato de comida ou um lugar para passar a noite, registrando vividamente o desespero e luta diária de uma pessoa no intuito único de conseguir o básico naquela situação crítica de sobrevivência naquelas duas cidades que representam, ainda hoje, o capitalismo: Paris e Londres.

Para tanto, como uma forma de melhor imergir naquele mundo, passou, literalmente, a viver naquelas mesmas condições e, assim, poder relatar fielmente como era aquela situação de vida.

Orwell, brilhantemente registrou que a primeira experiência com a pobreza vem carregada com o temor de que ela estava prestes a acontecer.

Dizia ele que muito embora as pessoas relutassem, mais cedo ou mais tarde, ela – a pobreza – se materializaria, e tudo se dava de forma prosaicamente diferente, porém, de forma completa, extremamente diferente e extraordinariamente complicada.

E a primeira coisa que se conhecia era a baixeza peculiar da pobreza e as mudanças que ela impõe; o desnudamento de si mesmo, e a invisibilidade.

De uma hora para a outra, tudo se esvai entre os dedos e diante dos olhos.

O outro autor é russo Serguei Dovlátov, autor do livro “A mala”.

Em “A mala”, ele traz à tona sua história de como emigrou da antiga União Soviética para os Estados Unidos da América no final da década de 1970, relatando as dificuldades de sobreviver em sua terra natal no auge da Guerra Fria.

Ilustradamente, no início de sua obra, ele resume, sarcasticamente, que o regime socialista solucionava tudo, até a oferta e a procura de meias de crepe, como foi ocaso do fiasco de sua negociação na compra de uma grande carga de meias de crepe finlandesas verdes, e que no outro dia houve uma inundação de meias de crepe russas custando um décimo do valor que pretendia vendê-las.

Além disso, descreveu, de forma sutil, entretanto, bastante direta e crua, que a situação econômica estava tão deteriorada, que mesmo tendo ficado revoltado ao saber que, pelas regras da União Soviética, quem emigrava só poderia levar consigo três malas, descobriu que tudo que possuía naquele tempo, mal ocupava uma mala.

Assim, apesar de situações distintas, o aviso é o mesmo: tudo é limítrofe.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica

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