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domingo - 25/02/2024 - 09:12h

Marcas do tempo

Por Marcos Araújo

Ilustração Web

Ilustração Web

O poeta romano Virgílio, autor de “Geórgicas” e “Eneida, costumava dizer aos seus comensais que o tempo fugia de forma irreparável (tempus fugit irreparabile). Como um “devorador das coisas” (tempus edax rerum) emendou depois, com precisão, o poeta Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.). Em suas aulas aos estóicos, o filósofo grego Sêneca repetia excessivamente que “nada é nosso, exceto o tempo.” E sobre a ansiedade humana na busca de um viver perpétuo, complementava: “Perdemos o dia esperando a noite e perdemos a noite esperando amanhecer.

Outro dia, fiquei absorto em envelhecidas sinapses cerebrais ao adentrar na ampulheta da minha existência, depois que o ilustre editor deste Blog restaurou uma publicação sua, de 12 anos atrás, noticiando a inauguração do nosso “novo” escritório.  Reflui no seu texto, para aportar brevemente no passado. À semelhança de Mário Quintana, admito que na minha cabeça “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”

Pensei nas diversas mudanças a que fui submetido. No último decênio, por exemplo, a tecnologia “devorou” muitos dos símbolos dos escritórios de advocacia do meu tempo inicial, a exemplo: i) a máquina datilográfica; ii) o diário oficial publicado em jornal impresso; iii) o processo judicial – e administrativo – físico; iv) os livros em papel; v) o contato com o cliente e o meio de consultar o advogado (que era fundamentalmente presencial, e agora é pelo Instagram e o WhatsApp); vi) os mandados judiciais, que são atualmente cumpridos por mensagens de WhatsApp etc.

O Direito foi mudando.  Antes, a fonte era a lei, depois a Constituição. Agora, somos espectadores da fuga da normatividade, valendo apenas a “decisão-norma” criada pelo Tribunal ou por um Juiz, em isolado. O STF virou legislador extraordinário, e Alexandre de Moraes um intérprete avesso da lógica constitucional.

No meu tempo, crises diplomáticas entre nações se resolviam em reuniões longas a portas fechadas entre os embaixadores. Hoje, são “viralizadas” a partir de publicações – dos embaixadores – em redes sociais. Os Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) todos os dias criam mais e mais portais, canais e oferta de serviços virtuais, uma prodigalidade de promessas descumpridas e serviços absolutamente ineficazes.

Os prejuízos são notados na família, na formação educacional, na educação social. Há um desprezo pelos encontros pessoais e estamos decretando a morte da mágica da afetividade humana.

A VIRTUALIDADE, penso eu, tem sido inimiga da criatividade, do aprofundamento do saber, do pensar instantâneo, da operatividade, da destreza do agir… Pelo menos, as crianças estão mais lerdas, menos ativas. Os profissionais também. Conhecimento temático é de superfície. O saber é apenas “googliano”. Os cursos de finais de semana, por Google Meet, diplomam milhares dos “especialistas” do presente.

Stravinsky (1882-1971), o famoso compositor e maestro russo, perguntado uma vez sobre o seu sucesso, negou bastar a inspiração. Dizia ele que tudo vinha pela persistência do trabalho: “Não se nega a importância da inspiração. Pelo contrário, considero-a uma força motriz, que encontramos em toda atividade humana. Essa força, porém, só desabrocha quando algum esforço a põe em movimento, e esse esforço é o trabalho.”

Meu desafio diário está na resposta de Arnaldo Antunes, dos Titãs: “não vou me adaptar”.  Tenho travado, como Aldyr Blanc, diálogo com o tempo. E sei que ele debocha de mim. O efeito é diverso do que foi musicado. Fico apenas com a parte final: No fundo é uma eterna criança, que não soube amadurecer / Eu posso, e ele não vai poder, me esquecer.”

Marcos Araújo é advogado e professor da Uern

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Raniele Costa diz:

    Parabéns Marcos Araújo ótimo texto.
    Assim como você o meu passado não reconhece o seu lugar e está sempre presente, não é que eu não goste do presente mas desvencilhar-se do passado pra muitos é tarefa difícil. mas como diz o Filósofo Belchior ” O passado é uma roupa que não nos serve mais” por tanto vamos viver o presente olhando para o futuro e de vez em quando dando uma espiada no passado.

  2. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    A par do título, do teor e, sobretudo do conhecido posicionamento politico do “genial” autor do artigo, oportuno sublinhar que a sessão nostalgia ora em revista, deveras mais uma vez demarca o quão os autoritários contemporâneos substituíram a prudência pelo ódio, o equilíbrio pelo confronto e, sobretudo a vida humana pela manutenção do Deus Mercado.

    Não esqueçamos, na perspectiva do lucro a qualquer preço e como único moto possível resultante da atividade humana em praticamente todas as plagas do Planeta Terra. Nesse contexto, a máquina substituindo o homem e o humano, o automatismo do mundo virtual e por via de consequência sua ascensão vertiginosa em todas as atividades humanas e sua imposição como modelo fundante dos meios de produção capitalista, sempre foram objetivos inarredáveis daqueles que na política real e institucional, elegeram e lutaram com as armas da violência pela manutenção do modelo de desenvolvimento imposto pelo Deus Mercado.

    Estamos em pleno século XXI e em nossa Dita Pátria Mãe Gentil, o dito senso comum ainda compreende que a ascensão de mais um bilionário a emergir do universo do agiotismo resultante do mundo do que chamam de empreendedorismo e do Deus Mercado, não significa a miséria de milhões de semelhantes em seu entorno.

    Em suma, dado o pensamento conservador e reacionário vigente desde sempre e imposto ao longo da nossa história pelas elites dirigentes, a maioria só consegue enxergar nas desigualdades, única porta de saída no longevo avanço do espaço/tempo histórico de meio milênio.

    Todavia, o que esperar de uma sociedade que de forma direta e indireta ainda em pleno século XXI, exercita o escravismo social como modo de perpetuar o Status Quo e seus conhecido privilégios …?!?

  3. Hermiro filho diz:

    Bela crônica dr Marcos
    Tem gente que não esquece o capitalismo
    Ora, vai morar nas ditaduras e deixe agente em paz.

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