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domingo - 12/03/2023 - 04:10h

Nau esperança

Por Carlos Santos

Rua Jerônimo Rosado, um marzão que parecia não ter fim, em 1974 (Acervo do Relembrando Mossoró)

Rua Jerônimo Rosado, um marzão que parecia não ter fim, em 1974 (Acervo do Relembrando Mossoró)

Relembro o poeta Gonçalves Dias em “Juca Pirama” para proclamar: “Meninos, eu vi”. Testemunhei duas enchentes épicas em Mossoró. Dois quadros, duas visões.

Em uma delas fui desalojado pela enxurrada; de outra resultou meu alojamento, de forma indireta, numa paixão: o jornalismo.

Vou contar o primeiro caso. Depois, quem sabe, abordo o outro, acontecido em 1985.

Situo-me em 1974. Estou nos arrabaldes do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Centro de Mossoró. Assisto o rio Mossoró banhar lentamente a rua Jerônimo Rosado, escalar as escadarias do adro desse templo e ocupar nossa casa sem resistência.

Sua água barrenta e devastadora produzia cenas incomuns aos meus olhos infantis: homens com calças arregaçadas, outras crianças a nado, caminhões ou simples carroças transportando móveis e picuás da vizinhança.

A chuva incessante que engordou o rio nos empurrou para fora com a força de quem manda, sem pedir licença. Um poder onipotente. Mesmo assim, a água que quase batia à cintura de muitos ali bem em frente, me divertia, sem que eu soubesse medir os estragos ou pressentir os desdobramentos da cheia.

Sapos apareciam aos montes, como se fora reprodução de uma das dez pragas do Egito. Multiplicavam-se aos milhares, fazendo do enorme quintal uma Normandia no Dia D, só para anfíbios. Uma cena grotesca que nunca mais vi se repetir.

Canoas e pequenas lanchas navegavam à nossa frente; o rádio ligado noticiava a ampliação territorial do rio Mossoró. Estávamos ilhados, acuados, a cada dia.

O burburinho na rua e o alagamento continuado não me afligiam. A imagem diluviana era acima de tudo encantadora à minha avaliação limitada. Cinematográfica. Estimulava a imaginação cheia de aventuras e super-heróis da TV e quadrinhos.

Ruas, praças e avenidas estavam transformadas num marzão. Uma via só. Fluvial. Quase amazônica.

Só me toquei do pior com a convocação final: “Arrume suas coisas. Amanhã cedinho a gente vai embora”. Partimos para nunca mais voltarmos àquele endereço.

Lá ficou uma parte de minha infância e inocência: a pequena pracinha de seu João Cantídio, nosso Colégio Dom Bosco a tão poucos passos.

Para trás o presépio de Maria de Uriel, miniatura bíblica cheia de vida em todo Natal; a casa acolhedora de dona Fefita e seus netos, todos meus amigos, que vez por outra me convocavam para tumultuar seu sossego.

A padaria de seu Eliseu Costa e dona Julita nunca mais seriam meu endereço de fim de tarde. Seus pães e bolos deliciosos, enrolados com técnica apurada em papel madeira, continuam em meus olhos, olfato e paladar. Memória sensorial.

As confrarias noturnas à calçada, com o tititi do dia, quase sempre vetadas à presença de crianças curiosas, continuam gravadas. As famílias pareciam uma só, sem o temor da violência urbana, sem as aflições psicossociais deste século XXI.

Vários nomes e lugares mantêm-se memorizados, outros se dispersaram com o tempo, mesmo que a imagem deles, ainda turva, pulule até hoje em minha mente.

Vejo o casal Izete-Raílton; Moisés dos Portões, padre Américo Simonetti e suas concorridas missas no Coração de Jesus; o tenente e delegado Clodoaldo Meira aboletado num Jeep aterrorizando quem teimava em jogar bola na área, pronto para picotar a pelota.

A senhora Júlia Menezes absorta; as irmãs Ilná e Alaíde Nascimento; minha “Maura” sempre loquaz, festiva e amante da prosa com Nadir Brasil e tantos amigos e amigas. A professora exemplar Dagmar Filgueira e a serenidade do senhor Trajano Filgueira.

O sítio “Pica-pau” no beiço do rio; o Cine Cid tão perto e a lenda de que em seu subsolo existia uma baleia. Com chuva ou sol, enchente ou não, o barulho que vinha de lá nos fazia acreditar nesse “Moby Dick” subterrâneo. O enredo caberia numa aventura escrita por Herman Melville ou o engenhoso Júlio Verne.

Por aquele pequeno portão gradeado de ferro da casa em que eu morava, de batente alto, soltei meu barquinho tosco, de papel. Vi-o flutuar nas águas por alguns minutos, até que desaparecesse.

Só muito tempo depois descobri que “navegar é preciso”. Minha nau frágil, não tripulada, era também esperança.

Buscava outro porto seguro além-mar.

Carlos Santos é criador e editor do Canal BCS – Blog Carlos Santos

*Texto originalmente publicado nesta página no dia 21 de janeiro de 2011, há mais de 12 anos e dois meses.

*Fotos do acervo do Relembrando Mossoró, de Lindomarcos Faustino, que podem ser ampliadas clicando sobre cada uma.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Marcos Ferreira diz:

    Sua crônica, amigo, transborda mais que aquelas águas remotas no tempo. Essa parte dos sapos é particularmente assustadora. A riqueza de detalhes também está acima do nível das águas daquele furioso rio. Enfim, com trocadilho e tudo, você deu um banho na crônica de hoje.

  2. Raniele Alves diz:

    Carlos !
    Também fui vítima dessa enchente em 1974, morávamos na Rua Benício Filho na Ilha de Santa Luzia, lembro bem , pois tivemos que sair de casa as pressas em uma Canoa,na mente de uma criança era uma aventura fantástica mas o perigo era eminente pois a correnteza era muito forte e poderíamos ter caídos e ser arrastados para o rio.
    Lembro também dos personagens da rua Jerônimo Rosado pois tinha uma tia minha Silvana Alves casada com Xixico Ludugero que morava lá e eu visita-os todos finais de semana, boas lembranças que não esquecemos.

  3. mdm diz:

    Hoje estamos livre desse desastre. Isso, nós devemos a melhor prefeito de Mossoró, o saudoso Dix Huit Rosado. Foi bom para os funcionários do município e melhor ainda para
    a cidade.

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