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domingo - 01/09/2013 - 09:06h

O médico à procura do ser humano

Por Rubem Alves

Antigamente a simples presença do médico irradiava vida. Antigamente os médicos eram também feiticeiros. “Mestre, diga uma única palavra, e minha filha será curada…”. A vida circulava nas relações de afeto que ligavam o médico àqueles que o cercavam.

Naquele tempo os médicos sabiam dessas coisas. Hoje não sabem mais.

Aquele médico ao lado da menina: não se parece ele com um cavaleiro solitário que vai sozinho lutar contra a morte? Naquele tempo os médicos sabiam qual era seu destino. Havia muito sofrimento, sim.

Havia muito medo, sim. Medo e sofrimento são parte da substância da vida. Mas nunca soube de um médico que ficasse estressado. Não são as batalhas que produzem o estresse. As batalhas, ao contrário, dão coesão, pureza, integração ao corpo e à alma.

O cavaleiro solitário é um herói com o corpo coberto de cicatrizes mas de alma inteira. Os estressados são aqueles que, sem ter uma batalha a travar, são puxados em todas as direções por uma legião de demônios.

A imagem do cavaleiro solitário que luta contra a morte é uma imagem romântica. Bela. Comovente. Quem não desejaria ser um? Criticam o romantismo. Fernando Pessoa comenta: mas não é verdade que a alma é incuravelmente romântica?

O médico de antigamente era um herói romântico, vestido de branco. As jovens donzelas e as mulheres casadas suspiravam ao vê-lo passar. Ainda bem que a consulta permitia o gozo puro do toque da sua mão…

O cavaleiro solitário que luta contra a morte é um santo. Quem, jamais, ousaria pensar qualquer coisa de mau contra o médico? Hoje são comuns os processos contra os médicos por imperícia.

Ser médico transformou-se num risco. Porque ninguém mais acredita na sua santidade. Talvez porque eles tenham deixado mesmo de ser santos… Mas, naquele tempo, as pessoas julgavam que o médico era um santo, e porque as pessoas pensavam assim, eles eram santos.

Eu me apaixonei pela imagem. Queria ser feiticeiro. Queria ser o cavaleiro solitário que luta contra a morte. Queria ser o santo. E esse ideal, para mim, não era uma abstração. Ele tinha um nome: Albert Schweitzer – um dos homens mais geniais do século XX.

Organista, escritor, teólogo, fez um trato com Deus: até os 30 anos, faria essas coisas que lhe davam prazer cultural. Depois, iria se dedicar inteiramente aos sofredores. Entrou para a escola de medicina aos 30 e, depois de médico, passou o resto da vida num lugar perdido das selvas africanas, construiu um hospital de madeira e sapé onde distribuía alívio da dor.

Claro, nunca ficou rico. Nem teve estresse. Sua bela imagem o fazia feliz. Ganhou o prêmio Nobel da Paz.

Não fui médico. Mas segui pela vida encantado por aquele quadro. O encanto foi quebrado quando fui fazer meu doutoramento nos Estados Unidos.

Um dia fui ouvir uma palestra do diretor do hospital da cidade de Princeton, NJ, onde eu estudava. Ele começou sua preleção com esta afirmação que estilhaçou o quadro: “O hospital de Princeton é uma empresa que vende serviços”. “Meu Deus”, eu pensei. “Aquele médico não existe mais”.

E percebi que, agora, os médicos se encontram lado a lado com os prestadores de serviço, os encanadores, os eletricistas, os vendedores de seguro, os agentes funerários, os motoristas de táxi. É só procurar na lista de classificados. A presença mágica já não existe.

O médico é um profissional como os outros. Perdeu sua aura sagrada. E me veio, então, uma definição do médico compatível com a definição que o diretor dera para o hospital de Princeton: “um médico é uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços”.

Essa imagem, em absoluta conformidade com as condições sociais e econômicas do mundo moderno, não fez nada comigo. Não me comoveu. Não desejei ser igual.

O mito de Narciso, eu acho, é o mito mais profundo. Todos nós, como Narciso, estamos em busca da nossa bela imagem. Mas para ver a nossa bela imagem temos necessidade de espelhos. Espelhos são os outros.

É no rosto dos outros que vemos a nossa própria imagem refletida.

Nos tempos antigos todas as pessoas eram espelhos para o médico. Todos o conheciam. Todos olhavam para ele com admiração. Hoje, morto o médico do quadro, o médico é agora procurado não por ser amado e conhecido, mas por constar no catálogo do convênio.

Seus espelhos não são mais os clientes, parentes, todo mundo. São os seus pares: colegas de empresa, sócios de consultório, congressos. Perigosas, essas relações entre pares. O primeiro assassinato registrado foi de um irmão que matou o irmão.

A relação do médico antigo com seus espelhos era uma relação de gratidão e admiração. A relação do médico de hoje com seus espelhos é uma relação de inveja e competição.

Acho que os médicos, hoje, são infelizes por causa disto: eles resolveram ser médicos por desejar ser belos como o cavaleiro solitário, puros como o santo, e admirados como o feiticeiro. Era isso que estava dentro deles, ao tomarem a decisão de estudar medicina. E é isso que continua a viver na sua alma, como saudade…

É. A vida lhes pregou uma peça. E hoje a imagem que eles vêem, refletida no espelho, é a de uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços…

Os médicos sofrem por saudade de uma imagem que não existe mais.

Rubem Alves é psicanalista e escritor, autor de várias obras publicadas pela Editora Papirus. Esta crônica faz parte do livro “O médico”, 2002.

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Categoria(s): Crônica / Grandes Autores e Pensadores

Comentários

  1. RC 50 diz:

    MÉDICOS CUBANOS NÃO SÃO ESCRAVOS ENTENDA E DESCORTINEM A VERDADE!
    //www.pragmatismopolitico.com.br/2013/08/medicos-cubanos-nao-sao-escravos-entenda.html

  2. J.Martins diz:

    Carlos,veja no blog //www.viomundo.com.br(Luis Carlos Azenha)a reportagem sobre a industria farmacêutica e sua influência sobre os médicos.

  3. Pedro Victor diz:

    Infelizmente, boa parte dos médicos que temos hoje formados e formandos, entraram na profissão por bem menos que “desejar ser belos como o cavaleiro solitário, puros como o santo, e admirados como o feiticeiro”. Entraram por status e dinheiro. Digo isso dos meus tempos de pré vestibular/cursinho, e de conversas que tive com médicos e estudantes de medicina.
    É dificílimo escutar algum falando sobre como se emocionou ao salvar alguém, ou como fez contorcionismo para poder encontrar a causa de uma doença desconhecida. Mas discussões sobre como seu carro novo é bom, como seus apartamentos são bons, como está gastando bem o seu dinheiro, isso se escuta muito.
    Não que seja proibido a um médico desfrutar das benesses da sua profissão, asim como eu desfruto das da minha, mas falta paixão à causa. E é por isso que, a meu ver, bate-se o ponto e sae-se para atender na clinica particular, recusa-se a atender uma paciente incapaz de se levantar a não ser que empurrem seu banco até sua sala, sobram médicos nas capitais e faltam nos interiores e periferias.

    Conheço muitos médicos bons e dedicados. Porém, infelizmente, já tive que escutar “Eu só queria ser rico e fiz anestesio. Fulano queria ser milionário, fez cardio”.

  4. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Meu Caro Pedro Victor, infelizmente não são poucos os médicos, os quais infelizmente não possuem e não exercitam no dia-a-dia do seu trabalho e quando interagindo com seus pacientes, um mínimo de responsabilidade profissional e social.

    Lhes falo isso, com conhecimento de causa, pois já fui proprietário de farmácias em Mossoró, quando à época – não foram poucas vezes -ouvi inúmeras reclamações de pacientes, que iam desde o mau atendimento puro e simples a falta de educação e cortesia quando do contato com o paciente, a falta de atenção mínima e muitas vezes ate´o cometimento de erros crassos quando da prescrição médica, por exemplo, receitar um medicamento via oral para ser usado em infecção intra-ocular.

    Obviamente que não são todos, mas, a grande maioria está visivelmente imerso na cultura da mais valia e do lucro a qualquer preço, sobretudo quando investidos em sua carapuça corporativista, a qual de há muito deixo de ser e de haver como algo a defender os médicos e a sociedade dos maus médicos, muito pelo contrário, mesmo porque se depender dos CRM’S da vida mais algum médico será punido por erros porventura cometidos quando do seu exercício profissional.

    Nisso tudo, o que fica manifestante evidente é a arraigada cultura de um perverso e deletério individualismo no âmbito de uma profissão que pela sua própria origem e natureza não se coaduna com essa prática e muito menos com as manifestações ditas de classe, que se tem visto país afora.

    Não esqueçamos que em grande parte, essa cultura tem a ver diretamente com o mercantilismo e o tecnicismo impostos, sobretudo pela medicina praticada pelos americanos do norte. No caso, eles que a tudo e todos tentam impor as suas concepções de sociedade, conseguiriam impor, inclusive no âmbito das nossa corporações médicas, e no dia-a-dia da classe médica brasileiro, esse viés e essa cultura do lucro a qualquer preço, exorcizando quaisquer vestígios humanísticos na relação médico -paciente que ainda existia e nosso país.

    Ressalte-se, vem também, do “paraiso” chamado USA a cultura da obsessão pela especialização médica, que no caso vai gradualmente impondo e aprofundando uma cultura de tratar doenças e não evitar que elas apareçam, mais ainda aprofunda uma cultura de que o médico em seu dia-a-dia, praticamente não se relaciona com seu paciente e sim com as máquinas.

    É de todos sabido, que não interessa, sobretudo as multinacionais fabricantes de medicamentos, que essa relação médico paciente dita romântica tão magistral e poeticamente descrita pelo genial Rubem Fonseca, seja digamos resgatada em nossa dia-dia médico/paciente. Mesmo porque, acaso isso aconteça, significará, para os tubarões das multinacionais, da indústria farmacêutica, alguns bilhões a menos em seus cofres, o que para eles nada tem a ver com vida e sim com lucro fácil.

    A esse respeito, peço vênia para transcrever elucidativa entrevista com a socióloga norte-americana Julie Feinsilver, estudiosa da diplomacia médica cubana.

    VEJAMOS:

    Entrevistas
    Julie Feinsilver estudou a diplomacia médica cubana: mortalidade infantil caiu 50%; FBI vigiou socióloga

    publicado em 1 de setembro de 2013 às 16:57

    por Heloisa Villela, de Nova York, especial para o Viomundo

    Corporativismo e falta de conhecimento a respeito do sistema de saúde cubano são apenas alguns dos motivos para a reação de alguns médicos brasileiros à chegada dos colegas de Cuba, na visão da socióloga norte-americana Julie Feinsilver, estudiosa da diplomacia médica cubana.

    Ela é produto daquelas coisas bem paradoxais dos Estados Unidos. O país que ainda mantém o embargo a Cuba, tantas vezes tentou matar Fidel Castro e minar a revolução também produziu uma estudiosa dedicada a acompanhar a revolução da saúde em Cuba e a diplomacia médica que transformou a pequena ilha em uma potência sem comparação no planeta.

    Julie lançou, em 1993, o livro Healing the Masses (poderia ser traduzido para “Curando as Massas”) e mandou uma cópia para a então primeira dama Hillary Clinton que estava, naquele momento, encarregada de propor um novo modelo para o sistema de saúde dos Estados Unidos. Quem sabe Cuba poderia ensinar algo ao inimigo do norte?

    Claro que a socióloga nunca ouviu qualquer comentário da Casa Branca. Mas hoje o livro e os artigos de Julie Feinsilver são referência para quem quer estudar o assunto e até a Casa Branca deu sinal de vida.

    Julie já viu algumas citações de representantes do governo Obama pescadas do trabalho dela e até recebeu telefonemas de gente que trabalha no atual governo.

    Hoje ela conta, entre uma risada e outra, que o presidente Barack Obama foi procurado por vários líderes da América Central e da América do Sul durante a Cúpula das Américas, em 2009, com pedidos para que suspendesse o embargo a Cuba. Muitos citaram a diplomacia médica cubana como exemplo. Obama teria dito (imaginem!) que os Estados Unidos poderiam aprender algo com o que Cuba vem fazendo.

    Se hoje acha graça das reações a seu trabalho, Julie Feinsilver também lembra que a pesquisa teve momentos bastante difíceis.

    Ela foi vigiada pelo FBI e pela CIA, teve o telefone obviamente grampeado e mais de uma vez entrou em casa e percebeu uma coisa ou outra fora do lugar.

    Teve medo, sim, mas nunca largou o assunto pelo qual se interessou quando ainda era estudante. Antes de entrar na faculdade, Julie partiu para uma viagem de mochila nas costas, que começou pela América Latina.

    Conheceu vários países, navegou rios da Amazônia e ficou muito impressionada com as desigualdades dentro dos países e entre eles. Ela terminou a viagem em Praga onde, por acaso, comprou “A história me absolverá”, de Fidel Castro.

    Foi quando decidiu que a experiência de Cuba era algo interessante, que merecia ser estudado, principalmente levando em conta a realidade que acabara de conhecer.

    Dados que ela cita sobre o trabalho médico dos cubanos: 153 milhões de consultas em todo o mundo, sendo 47 milhões em visitas caseiras; 3,5 milhões de cirurgias, sendo 1,6 milhão oftalmológicas; 1 milhão de partos e 1 milhão de doses de vacinas aplicadas. Cerca de 30 mil estudantes recebendo treinamento em seus próprios países. Desde 1961, os cubanos trabalharam em 103 países, seja em serviços médicos duradouros ou por causa de desastres.

    Julie Feinsilver conhece bem o Brasil, foi consultora da Fiocruz e está acompanhando o bate-boca em torno do programa Mais Médicos.

    De Washington, onde mora, ela conversou conosco.

    Viomundo – Essa reação aos médicos cubanos também aconteceu em outros países?

    JF – Sim, mas não na proporção do que aconteceu no Brasil. No Brasil o protesto foi mais sério, mais organizado e elevado a outro nível.

    Viomundo – Por que essa reação toda?

    JF – Não sei, mas talvez as organizações médicas sejam mais fortes do que em outros países, ligadas a partidos poderosos. Talvez o número de médicos seja maior. Também acho que pode haver uma confusão no Brasil por causa dos protestos que já estavam acontecendo, com relação aos gastos em estádios de futebol e preparativos para eventos esportivos no lugar de investimentos em saúde, educação e comida. Transporte, moradia e empregos.

    Talvez haja uma confusão entre os assuntos. Mas a primeira coisa que eles pensam é: “Esse cara veio roubar o meu emprego”. Não é o caso. Até onde eu entendi, poucos médicos brasileiros se inscreveram no programa e como na maioria dos países, profissionais altamente preparados não querem trabalhar em áreas remotas, em favelas. Nos EUA é a mesma coisa. Você não encontra muitos médicos trabalhando em áreas remotas.

    Viomundo – Os médicos cubanos ajudam nessas situações?

    JF – Tremendamente porque vão lá e trabalham nas áreas onde os médicos locais não vão. Desde 1961, mais de 135 mil profissionais de saúde cubanos trabalharam em 107 países e nas áreas onde trabalharam, em geral reduziram a taxa de mortalidade infantil pela metade. De acordo com as estatísticas deles, salvaram mais de quatro milhões de vidas.

    Levaram atendimento básico a áreas onde as pessoas não tinham médico algum. E isso faz uma diferença enorme. O foco deles é bem diferente do foco dos médicos treinados no Brasil e em quase todos os países. Eles focam na medicina preventiva. Na promoção da saúde e na prevenção de doenças. E inclui o que chamam de aspectos bio-psicológico-sociais e de meio ambiente.

    Eles olham para a pessoa em todas as suas dimensões e não apenas para um fígado, uma gripe, ou malária…

    Eles vão para a comunidade e fazem uma pesquisa epidemiológica. Analisam a situação, os fatores de risco do indivíduo e da comunidade. Ao invés de adotar um ponto de vista da oferta, eles adotam o ponto de vista da demanda. Olham para os problemas da comunidade e tentam resolvê-los, mas também tentam evitar o desenvolvimento de doenças.

    Viomundo – Em geral, eles trabalham nos países por um período de dois anos e depois vão embora ou ficam por mais tempo?

    JF – Em geral eles vão por dois ou três anos, às vezes renovam o programa para mais uma rodada. Mas em geral são dois anos e vão embora, apesar de alguns ficarem… extra-oficialmente.

    [O vídeo acima diz respeito ao programa do Departamento de Estado dos Estados Unidos que tenta convencer médicos cubanos que trabalham fora da ilha a desertar — denúncia do Jair de Souza, no Viomundo]

    Viomundo – E o que acontece com essa população que não tinha atendimento, volta a ficar desassistida?

    JF – Esses acordos são bilaterais, entre governos. E o governo se compromete a melhorar a saúde da população, mas muitos países não tem um número suficiente de médicos e tem que contratar de fora. O compromisso é do governo e ele decide se vai continuar prestando o serviço ou não. Os cubanos também tem um programa de treinamento de profissionais de saúde locais. E mudaram de estratégia. Antes eles ofereciam bolsas de estudo para esses alunos estudarem em Cuba. E formaram mais de 28 mil médicos de outros países desde que começaram o programa, em 1961.

    Mas agora estão treinando 50 mil médicos de outra forma. Criaram um modelo tutorial para os médicos cubanos que vão nessas missões internacionais poderem dar aulas. Tornam-se tutores de três ou quatro estudantes locais de medicina. Esses alunos acompanham os médicos e no começo, claro, apenas observam. Depois pesam bebês, medem pressão, não fazem nada muito sério. Mas aprendem técnicas clínicas e epidemiológicas, ao mesmo tempo em que tem aulas e instruções via internet.

    É um tipo de treinamento no trabalho com algo mais. E esse, em geral, é o plano quando Cuba envia médicos: treinar alunos locais. Sempre alguém da comunidade mesmo, que vá trabalhar ali e que vai ficar ali porque não está acostumado com outro tipo de vida.

    Viomundo – Como nasceu esse sistema de saúde cubano? Muita gente diz que foi inspiração do Che Guevara…

    JF – O Che Guevara, que era médico, realmente se preocupou muito com a medicina e com a saúde durante a revolução. Ele teve influência. Mas Fidel Castro, desde cedo, foi um médico frustrado e admitiu isso em biografias. Eu o vi, pessoalmente, em conferências médicas, em Cuba, passar horas questionando os palestrantes. Ele conhece os detalhes. Todo mundo que o conhece e trabalha com ele diz que ele tem uma preocupação constante com a saúde.

    Quando a revolução triunfou e os guerrilheiros entraram em Havana, Fidel foi fazer um grande discurso e uma pomba branca pousou no ombro dele. A pomba branca é um símbolo, na santeria afro-cubana, do Obatalá, o deus da saúde e da educação. Você pode olhar as fotos da época. Em 1978 o Fidel disse que faria de Cuba um poder médico mundial e via nisso uma competição moral com os Estados Unidos.

    Viomundo – Quem venceu essa competição?

    JF – Acho que foi Cuba!

    Viomundo – O que é incrível para um lugar tão pequeno com tão poucos recursos…

    JF – É extraordinário. Eles têm pouquíssimos recursos materiais, mas têm recursos humanos. E desde cedo Fidel percebeu a importância de investir em saúde, educação e ciência. Em 61, se não me engano, ele disse: “Nós vamos criar cientistas, não somos uma porção de indígenas de fraque”.

    Viomundo – Eles perderam muitos médicos no começo da revolução?

    JF – Perderam metade. Tinham pouco mais de seis mil médicos e perderam 3 mil imediatamente. Por isso tiveram que mudar o modelo de medicina que era praticado. Como em quase todos os países do mundo, existia uma má distribuição dos profissionais de saúde e das instalações, com grande concentração nas áreas urbanas. Inicialmente, se concentraram na zona rural e enviaram médicos para o interior.

    Viomundo – Por que tiveram tanto sucesso? Por conta do planejamento centralizado? Por que não existe a necessidade do lucro então podem conduzir a medicina de outra forma? Por que existia um empenho pessoal?

    JF – Acho que é uma combinação de tudo isso. Houve uma mística revolucionária entre os médicos. A experiência que as pessoas tiveram em Sierra Maestra, trabalhando durante a revolução, vendo pessoas morrendo de fome, com todo tipo de doença, resultado das condições em que viviam ou da falta de assistência médica, influenciou. Mas uma vez que o estado é o dono dos meios de produção, da educação e dos empregos ficou tudo muito mais fácil. Mas inicialmente, eram voluntários que se deslocavam porque havia esse idealismo, esse entusiasmo em corrigir os erros do passado. De melhorar a vida das pessoas na zona rural.

    Viomundo – E as brigadas internacionais, você sabe como selecionam quem vai viajar?

    JF – Não sei os detalhes, mas existe uma seleção. As pessoas são voluntárias e eles selecionam, checam a experiência e as necessidades da missão. Mas analisam com cuidado os candidatos. Sabem quem trabalha aonde e quais são as qualificações dos candidatos. Muitos querem ir porque ganham bem mais e podem levar para casa produtos que não podem comprar lá [em Cuba]. Muita gente tenta entrar na lista e não consegue. Mas precisam de um grande número de candidatos.

    Viomundo – Como a Venezuela resolveu o problema da revolta dos médicos locais?

    JF – O governo foi adiante e passou por cima dos médicos. Mas hoje vários médicos venezuelanos estão trabalhando com os cubanos no programa Barrio Adentro. Os cubanos foram trabalhar em áreas onde ninguém queria trabalhar. Algumas muito perigosas. 68 médicos cubanos já foram mortos. Não foi por problemas políticos, mas por causa da violência mesmo.

    Viomundo – Você disse, em um artigo, que a presença dos médicos cubanos em alguns países está promovendo mudanças nas relações entre médicos e pacientes, na forma de pensar a medicina. Poderia explicar melhor?

    JF – Os médicos cubanos, quando criam um programa (não sei se será assim no Brasil porque já tem o SUS), eles trabalham em pequenas clínicas e vivem na comunidade. Estão sempre disponíveis. Visitam pacientes em casa, nas escolas, no trabalho. Isso muda a natureza da relação médico-paciente.

    Os médicos cubanos não são da elite. Tratam os pacientes mais de igual para igual, sem a hierarquia que você encontra na maior parte do mundo. Eu saí com eles, acompanhei o trabalho. Eles não ficam sentados dentro da clínica. Vão visitar as pessoas e quando fazem isso, estão analisando os fatores de risco, as condições do local para tentar identificar quais podem ser as ameaças à saúde para propor trabalhos conjuntos com outras agências. Distribuição de água, ou algo assim.

    E quando circulam na comunidade, são abraçados e cumprimentados como velhos amigos. É uma relação próxima, familiar, o que é uma grande diferença. Isso muda a maneira como olhamos para o serviço de saúde. Os cubanos se destacaram no mundo com esse serviço básico de saúde. Mas ao mesmo tempo eles têm um serviço terciário muito avançado, e biotecnologia, desenvolvimento farmacêutico. Procedimentos cirúrgicos muito avançados também.

    Mas quando os pacientes veem a medicina de outra forma, os políticos enxergam uma relação de custo benefício melhor porque a prevenção é sempre mais barata do que a cura, isso obriga a repensar. Como resultado, nos países em que os cubanos trabalharam ou ainda estão trabalhando, muitos decidiram adotar um programa de saúde mais abrangente baseado no modelo cubano.

    Isso aconteceu em muitos países da África, da América Central. Foi feito no Haiti, com o apoio do Brasil, através da Organização Pan-Americana de Saúde. E claro, a Venezuela, onde foi feito em larga escala, e no Timor Leste.

    Quando as pessoas veem esse modelo funcionando e os resultados, se convencem. Claro que você não vai mudar a estrutura da medicina no Rio, em São Paulo ou Brasília porque são sistemas muito grandes e complexos, com vários interesses poderosos em jogo. Mas para lidar com as necessidades primárias dos cidadãos que não tem nenhum acesso, é uma ótima saída.

    Eu ouvi alguns médicos do Brasil dizendo: “Se não tem médico na cidade, os pacientes podem ir até a próxima cidade”. Por favor! Estão pensando apenas nos interesses corporativistas deles. Mas esses que estão reclamando são médicos especializados, que trabalham em hospitais. Se estão chateados assim, por que não vão ao Amapá trabalhar?

    Mas lá não poderão ver o paciente por uma hora, no sistema público, e depois enviá-lo para sua clínica particular. Acho que existe uma certa confusão de assuntos e os médicos que estão reclamando não estão pensando com clareza. Fizeram o Juramento de Hipócrates realmente a sério ou estão apenas buscando seus benefícios próprios?

    Viomundo – Você se sente uma voz isolada, nos Estados Unidos, neste assunto?

    JF – Com certeza! Mas sei que não sou a única voz. Comecei a escrever sobre isso em 1989. Desde então, alguns alunos, que agora são professores, escreveram dissertações sobre o assunto. Usaram meu livro e meu primeiro artigo em seus próprios trabalhos. Mas não existe muita gente estudando e falando disso. É uma pena.

    Quando o meu livro foi publicado em 1993 (“Healing the Masses”) mandei uma cópia para a Hillary Clinton porque ela estava encarregada de um projeto de reforma da saúde. Não sei se ela recebeu e ninguém nunca me contatou. Mas sei que algumas pessoas do governo atual usaram meu trabalho porque vi citações e alguns me contataram nos últimos anos.

    Em 2009, durante a Cúpula das Américas, o presidente Barack Obama foi abordado por quase todos os líderes regionais pedindo que ele suspendesse o embargo a Cuba e um dos temas mais citados foi a diplomacia médica de Cuba nestes países. E o bem que fez. Ao saber de tudo isso, na época, o presidente Obama disse: “Podemos aprender muito com o que Cuba está fazendo”.

    Viomundo – Por que você resolveu se dedicar a este estudo?

    JF – Quando terminei a escola, antes de entrar na faculdade, fui viajar pela América do Sul. Fiquei impressionada com a disparidade de renda dentro dos países e entre os países. Também fui à Europa e fui parar em Praga. Lá entrei em uma livraria e vi esse livro intitulado “A história me absolverá”, do Fidel Castro. Achei interessante. Não era muito consciente politicamente. Mas fiquei impressionada. A revolução cubana era uma experiência nova que tentava reduzir as disparidades entre ricos e pobres, centros urbanos e zona rural. Depois de tudo que eu tinha visto…

    Viajei muito pelo Brasil, pela Amazônia cruzando estradas que não existiam na estação chuvosa, descendo rios em pequenos barcos, e vi muitas coisas em vários países e achei que a revolução cubana era algo que merecia ser estudado. E foquei na política de saúde.

    Viomundo– Por ser norte-americana, você teve problemas para ir e voltar? Para entrar nos Estados Unidos novamente?

    JF – Na verdade, não. Mas os vistos para Cuba muitas vezes chegavam com bastante atraso.

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    Viomundo – Então, com o governo norte-americano você nunca teve problemas?

    JF – Não é bem assim… Em 1979, quando estava voltando de Houston para Nova York, dormi no carro que me levava do aeroporto para New Haven, em Connecticut. Um caminhão bateu no carro bem onde eu estava sentada, no meio da noite.

    Fui levada para o hospital com o nariz quebrado. Fui liberada as quatro ou cinco da manhã. Me deram um remédio forte para dor e fui para meu dormitório na Universidade de Yale. Às 8 da manhã recebi uma chamada de um agente do FBI.

    Ele pediu desculpas por me incomodar depois do acidente, mas disse que precisava me fazer umas perguntas. Ninguém sabia do acidente! Eu estava sozinha! Tinha ido a Cuba uns meses antes. Disse que não podia falar e no dia seguinte procurei um advogado de direitos civis que defendeu um dos Panteras Negras [grupo que atuou em defesa dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos].

    Ele mandou dar o número de telefone dele caso ligassem novamente. Decidimos entrar com um pedido, dentro da Lei da Liberdade de Informação e consegui a cópia do arquivo a meu respeito no FBI. Eles estavam me vigiando. Os relatórios estavam quase todos cobertos com tarjas pretas. Não pude ler quase nada além do meu nome e do meu endereço. Mas na lateral estava escrito: “Enviado para a CIA”.

    Viomundo – Você ficou com medo?

    JF – Claro! Eu chegava em casa e algumas vezes algumas coisas estavam um pouco fora do lugar nas minhas gavetas. A minha linha de telefone sempre tinha uns barulhos estranhos. Acho que eles queriam me assustar porque não precisavam deixar sinais. Fiquei um pouco paranoica por um tempo. Descobri que meu telefone estava mesmo grampeado com a ajuda de um amigo especialista nisso.

    Viomundo– E no meio acadêmico, teve dificuldades?

    JF – Uma vez, com a editora da Universidade Harvard. Mandei um manuscrito. Exigiram mudanças em umas comparações que fiz com os Estados Unidos. Era importante demais e me recusei. Então, não publicaram.

    Um Abraço

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  5. robson diz:

    E DO JEITO Q A COISA VAI, POUCOS VAO FAZER MEDICINA…. NEM GRANA, NEM STATUS NEM CONDIÇOES DE TRABALHO… UM CIENTISTA PESQUISADOR VAI PRA UNIVERSIDADE DE METRÔ E GANHA POUCO MAIS QUE UM PLANTONISTA DE EMERGENCIA… BRASIL SEM RUMO, SEM JEITO. QUEM COMENTOU AI FALOU ERRADO, PQ O SONHO DE TODO ACADEMICO É SER UM BOM MEDICO E A CORTINA CAI QDO CHEGA NA REALIDADE BRASILEIRA, NOS DESNIVELAMENTO DE SALÁRIOS…………… MAS ESTÃO AI, SALVANDO VIDAS NOITES A DENTRO, ATENDENDO DE BANDIDO A PAI DE FAMILIA E GANHANDO O Q GANHA UM EMPREGADOZINHO DA CAMARA FEDERAL EM COMEÇO DE CARREIRA.

  6. Francy Granjeiro diz:

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