Por François Silvestre
Passado nos anos, está quase cego. Mas vê distante. Principalmente com os olhos da memória, que não se embaçam nem se perdem nas águas inexistentes da catarata.
Seu nome repete o nome do pai. O que se fez resumir pelo som mais próximo. Anacleto virou Queto, pela dificuldade que tinha sua avó na pronúncia do “éle” depois da consoante. O que seria Cleto é Queto.
E assim ficou: Queto de Anacleto de Silecina. Carregava, portando, no próprio nome, os nomes agregados do pai e da avó.
Mora numa casa quase perdida entre o riacho dos Dormentes e a serra do Bonsucesso. De alvenaria, apenas o quarto de dormir e a cozinha. Corredor e sala, de taipa; latada coberta com palmas de carnaúba.
Fui visitá-lo num Domingo de tarde modorrenta, a esperar as chuvas prometidas pelos meteorologistas. O caminho quase desapareceu. O carro foi deixado na subida da ladeira de Portalegre, no antigo sítio de Rodolfo Mafaldo.
Queto estava quieto, sentado num tôco de quixabeira sob a sombra de sua latada. Usa óculos borrados, mais por hábito do que por serventia.
“Chegue-se mais perto, de longe só vejo pelos ouvidos”. Ao me apresentar, ele levantou-se. “Ora, ora. És vosmicê mermo”? Queto só fala “errado” quando quer. Teve instrução média e leitura boa, por conta de sua convivência com Padre Mário, velho pároco de Portalegre. Anos Cinquenta e Sessenta.
Naquela Matriz Queto era um faz tudo. De manutenção a ajudante de missas. Que ele ainda recita em latim.
Passou a mão no meu rosto e explicou: “Quero ver se ainda usa barba”. Depois, sentou e mandou que eu fizesse o mesmo.
Apoiava-se na bengala alisada pelo tempo, uma vergôntea de mofumbo. Conversamos sobre as “novidades”, que ele ignora. “Nem sei quem é o prefeito, Vosmicê sabe”?
Perguntei sobre a saúde. Ele riu: “A minha ou a do povo”? Quis saber dele. A do povo, ora, que saúde? Ele começou pela idade. “Preste tento. Véi num tem saúde, tem mantença. Ajeita daqui, remenda dali, pra continuar a ilusão da vida”.
Descobri que ele não vai à farmácia. Mantém o mesmo hábito do seu avô materno, que foi “médico” popular. Para problemas de respiração, chá de raiz da ipepaconha. Fortalece os ossos com mastruz no leite. Leite da cria de suas cabras. Quando a urina escasseia, toma infusão de velame com raiz de quebra-pedra.
Na agitação, chá de capim-santo; calmante, que ajuda a dormir. Afina o sangue com a batata de purgar. E chá de canela para controle da pressão. Quando o esôfago se irrita, ao tomar umas biritas, tira a ressaca com chá de fedegoso. Escova os dentes com raspa de juá. Na febre, infusão de eucalipto. Ao ferir-se, tintura de jucá.
Pergunto sobre o tempo. Ele tira os óculos, como se servissem para alguma coisa, e responde: “Meu filho, parece que até as plantas e os bichos se esqueceram do que sabiam”.
Té mais.
François Silvestre é escritor
* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.
“Apois” num é que também em minha amada terrinha Apodi sou conhecido como Marcos de Geraldo de Aristides Pinto. Veja que termina em meu avô paterno. Só não gosto quando me perguntam se sou filho do FINADO Geraldo Pinto. Ora bolas ! prá que ficar remoendo essa afirmativa de que meu pai já é falecido, morto e sepultado ?. Na maioria das vezes, respondo um pouco irritado: Agora entupigaitou mesmo!. O pior é a constatação de que esses meninos bundões de hoje não sabem o que significa o nome ENTUPIGAITOU no vocabulário matuto. Tenho mesmo é que explicá-los: Homi, desasne ! – Você falar entupigaitou é o mesmo termo de hoje “AGORA TOROU DENTRO!”. Inté.
Desculpem-me pela redundância falecido e morto.
Na gostosa, irreverente e primacial escrita do François Silvestre podemos no tempo/espaço tão peculiares ao contexto de um sertanejo nordestino, conhecer um pouco da sabedoria de Queto do Anacleto.
No caso, a última frase … “Meu filho, parece que até as plantas e os bichos se esqueceram do que sabiam”.
bem demarca e caracteriza o tempo que o dito “progresso” nos legou, com a indiscutível e irreparável destruição da natureza tendo à frente o bicho homem.
Nesse contexto, peço Vênia para trancrever textos poéticos cujo autor não sei nominar, vejamos:
A CANÇÃO DA TERRA
Eu vi no tempo que o homem não conta
Eu vi no tempo há muito tempo
Há tanto tempo que me perdi
Eu vi a terra engolir o rio
De águas escuras e já sem vida
Levá-lo a seu ventre
Purificá-lo e vomitá-lo por entre as rochas
Límpido, ligeiro, cheio de vida
Distribuindo a vida e saciando
A sede de quem o maculou
Eu vi a árvore decepada e dizimada
Quase arrancada pelas raízes
Brotar dentre as cinzas
A oferecer sombra e frutos
A quem a decepou
Eu vi o homem rasgar a terra
E de suas entranhas retirar jóias brilhantes
Que a terra enternecida oferecia graciosamente
A quem nela penetrasse… sem nenhum respeito
Eu vi o pássaro beijar a flor
E no seu bico perpetuar
Volitando alegremente
A vida e a espécie
Eu vi o homem se perder em perguntas
Tendo à sua frente… respostas
Eu vi o ser cheio de luz…cego
Eu vi a Terra…
Explodir em vida, perfeição e beleza
E o homem cego… se arrastar por ela
Eu vi…
E tanta coisa eu vi
Que desisti de enxergar
Pois perante a luz
Que brotava de dentro de mim
Me inebriei, e por medo de perdê-la
Fui capaz de beber da luz
De quem brilhava menos que eu
Cada ser tem dentro de si mesmo
A centelha divina de luz
E a partir do momento que ela se acende
Precisamos difundi-la e
Abraçar com ela toda a obscuridade
Antes que ela se apague… perdida
Entre os dedos gananciosos
Do homem, que destrói a terra
A árvore, o rio, o pássaro
E toda a vida que há em volta dele
Que cego, se atira em buscas
Ofuscado em sua ânsia de poder
Cego por sua pouca capacidade
De doar e agradecer
O que foi lhe oferecido gentilmente
E em abundância.
PLANETA MUNDO
— Onde te perdemos?
— Por que te perdemos?
— Que controles falharam? pergunta, perplexo, o homem ao homem, a respeito das intempéries do seu planeta.
— Onde erramos? Que cálculo não efetuamos? Ou teremos efetuado errado? pergunta o homem inteligente materialmente, mas ignorante espiritualmente.
Nele, pulsam células metálicas, pois metálico é o seu pensamento, impregnado que está da artificialidade da vida moderna em que vive.
E jura, acreditando-se feliz e sábio.
E jura, acreditando ser o maior e estar produzindo o melhor de si.
Quão tolo é você, homem!
Quão vaidoso e orgulhoso é você, homem!
Muito há que ser aprendido sobre este planeta por você.
Muito há que ser feito a esse planeta por você, homem. Principalmente a sua reconstrução, já que nada disso foi construído por você.
O que acontecerá com sua conta bancária, se amanhã a chuva ácida tocar o seu telhado?
O que acontecerá com o seu emprego, se amanhã a Antártida degelar-se por completo?
O que acontecerá com o seu carro, se amanhã mais árvores forem arrancadas homicidamente de seus lugares, se os pássaros e outros animais forem desabrigados de seus mundos?
Nada, homem.
Pois você preocupa-se somente com o que tolhe sua liberdade, na materialidade do seu poder.
Enquanto nós envenenarmos o planeta com a poluição, enquanto os oceanos forem danificados em sua pureza, enquanto a vida for destruída pelo despotismo de sua vaidade imensurável, homem, muitos homens serão mortos, e mais homens serão mortos no futuro, e os filhos destes homens e seus filhos serão mortos.
A insensatez e a estupidez de suas atitudes não o levarão a fim melhor, também.
Também você, homem, um dia pagará, ceitil por ceitil o que a esse planeta fez.
Mas há tempo…
A natureza é mãe bondosa que, ansiosa, espera pelo dia de poder recomeçar junto com você, homem.
Dê uma chance a ela.
Dê uma chance à vida
Dê uma chance a você.
Um Baraço
FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
OAB/RN. 7318.
Excelente leitura. Parabéns.