• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
quarta-feira - 26/01/2011 - 11:13h

Tributo a Chiquinho


Meu passado como folião não chega a ser glorioso. É opaco mesmo. Nem passado é. Não passa de um fóssil antropológico. O máximo a que me atrevi foi compor a platéia para ver “Os pimpões”, “Salinistas”, tribo de índios “Penas Prateadas” e outras agremiações de rua em Mossoró.

Os olhos de menino testemunhavam o belo, o rugir de tambores, evoluções circenses e um multicolorido incomum. Mas a timidez parva não permitia sequer os passos recatados do miudinho, uma coreografia quase imperceptível, que em momento algum eleva o sujeito do chão. É como amassar barro.

– Você vai passar o carnaval comigo em Aracati (CE). Você é meu convidado – fuzila Enéas, meu novo-velho amigo de faculdade.

Podia faltar? Seria descortesia e insulto àquela camaradagem. E cá pra nós: eu precisava mudar de ares, oxigenar, chacoalhar o esqueleto ou apenas aliviar o estresse. Decidi-me por aceitar convite. 

Foi lá que conheci Chiquinho.

Discreto, indivíduo de poucas palavras, benquisto por todos e com uma intimidade familiar capaz de lhe garantir um lugar acima de todos, Chiquinho não era qualquer um. Era o “cara”, digamos assim.

Tanto prestígio não o tornava arrogante no meio familiar. Fechadão diante de quem não conhecia, averiguava primeiro com quem tratava, para deixar de olhar de lado e balbuciar algumas palavras.

O infante Heitor, príncipe-herdeiro de Enéas, até parecia conformado em dividir as atenções com Chiquinho, naquela casa sempre agitada, de frenético entra-e-sai de gente.

Na verdade, os dois não pareciam rivais. Só que não se pode afirmar também que Heitor estivesse numa companhia exemplar e ideal à sua formação de garoto-homem.

Testemunhei o Chiquinho mergulhando o bico na cerveja e até mesmo na pinga, com a maior naturalidade. Os olhos reviravam de êxtase. “O forte dele era mesmo a cerveja”, comenta Enéas. “Bebia até se fartar”, esclarece. Ou seja, não tinha limites para o vício e o seu copo estava ali, separado, à mesa.

Por que estou tanto a comentar sobre o Chiquinho, quando o natural seria descrever o burburinho do carnaval popular de Aracati?

Bem, é triste revelar, mas não vou mais esconder: Chiquinho morreu. A notícia quem me dá é o próprio Enéas. “Era como se fosse da família”, admite. Nem precisava acrescentar a observação.  Pude testemunhar isso.

O pouco tempo de convivência com Chiquinho revelou o que seria impossível ignorar, ou seja, a presença dele era imponente. Fitava a todos de cima para baixo, mas com a popularidade de uma vedete do teatro de rebolado. Ops! Peraí.

Deixe-me esclarecer. Ninguém tome o comparativo como insinuação que atente contra a honra e os valores sexuais do finado.

O costume feio dele se prendia às carraspanas. Era cu-de-cana declarado. Só. Não lanço qualquer insinuação menor. Morto merece respeito.

As primeiras averiguações feitas no local onde encontraram seu corpo inerte, em posição de decúbito frontal, revelam que a morte ocorreu ainda na madrugada. Houve luta corporal, um duelo titânico.

O agressor o derrubou de considerável altura, passando a atacá-lo com fúria bárbara. As marcas da crueldade eram visíveis.

Com a experiência de quem foi diarista da vodca Wyborowa e que na decadência etílica esteve movido a “Odete” e conhaque Imperial (argh!), arrisco um comentário: “Chiquinho estava triscado quando morreu. Deve ter facilitado a vida do assassino.”

Enéas retruca. Defende-o com vitalidade. “Ele só tomava umas nos finais de semana”, assegura. Como se convencionou chamar, Chiquinho “bebia socialmente”. Tudo bem. Não contesto a informação e não desejo criar embaraço à biografia de quem se foi. Mantenho discretamente minha desconfiança e pronto.

Inconformado com a morte no quintal de sua casa, Enéas jurou vingança. Seria a reprodução do “olho por olho, dente por dente.” Relaxando, livre da tensão inicial ao relatar o infortúnio, ele fala com ar triunfante que deu cabo do algoz do seu amigo. Não deixou barato.

Colocada estrategicamente no local do crime, uma ratoeira enjaulou o enorme roedor que matara o pacato Chiquinho. O papagaio de cerca de um ano de idade, alegria da casa de Enéas, realmente não merecia fim tão violento. Entretanto, a justiça foi feita.

Minhas condolências à família. Eis meu tributo a Chiquinho.

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Categoria(s): Nair Mesquita

Comentários

  1. MARCOS PINTO - Da AAPOL, ICOP, IHGRN e do IANTT. diz:

    Amigo Carlos,a sua belíssima e contagiante e pungente (na peroração) crônica fez com que a saudade do meu papagaio transbordasse do meu coração e escorresse pelos olhos. O meu papagaio representava uma espécie de relíquia herdada do meu pai, que o deixara com 10 anos de idade, e que passou mais cinco sob minha guarda e cuidados. De tudo que é esperteza e inteligência tinha um pouco – sabendo diferir o toque do interfone do tilintar do telefone fixo. Acantonado na área de serviço, respondia, de bate pronto, ao ouvir o som do interfone: Olhe o portão! Já vai!. Eis que, certo dia, saímos todos para efetuar compras (Num sábado),. Durante nossa ausência, um amigo foi até a minha casa entregar uma encomenda, tendo acionado o interfone e gritado várias vezes pelo meu nome, ao que ouvia a resposta lá de dentro da casa: JÁ VAI!. Encabulado, meu amigo telefonou-me perguntando onde me encontrava e porque alguém respondia que ia atender ao portão e no entanto não o fazia. Rindo muito, respondí-lhe que não havia ninguém em casa, e que a tal pessoa que respondia tratava-se do meu papagaio. Para minha profunda tristeza, facilitei e pus a gaiola com o papagaio, pendurada num armador da garagem, deixando o portão aberto. Em questão de cinco minutos que adentrei a casa, um ladrão safado roubou meu papagaio, deixando-me profundamente triste pela perda irreparável. Envidei todos os meios possíveis para descobrir seu paradeiro, tendo colocado aviso em todas as rádios AM,de que pagaria 200 reais para quem o localizasse e o devolvesse, tendo sido inúteis todos os meus apelos. Ainda hoje, passado seis anos, é grande a lacuna em meu coração.

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