• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 06/02/2011 - 01:43h

Um rosto de mulher no espelho furtivo


Longe de ser bonita, ela é mulher. Trabalhadora, sem dúvidas. De certo, com mãos encaliçadas, dedos com pele escamada, unhas sem textura e opacas. Mas é mulher.

Vaidosa. Porém acuada e tímida. Nem percebi a tonalidade de seus cabelos.

Bumbum? A preferência nacional? Não, também não.

Chamou-me atenção o espelho. O reflexo em seu rosto, o jeito furtivo com que foi sacado do bolso. O olhar apreensivo jogado pro lado, enquanto as madeixas emaranhadas lhe encobriam parte do cenho, compunha aquela cena.

Peça de primeira necessidade na nécessaire da moça fina, na bolsa da belle de jour, na mochila da criança espevitada, o pequeno espelho com ela tinha aura de proibido. Ajudava-a a conspirar contra sua própria condição.

Era um ocultação delicada e cuidadosa, longe da curiosidade alheia.

O espelho redondo, emoldurado a lhe caber na mão semi-côncava, era também uma arma de auto-preservação: do direito ao culto à própria vaidade. Uma forma de se impor como mulher, feminina, um ser vivo.

De se afirmar e afirmar diante dele: "Eu existo!"

Àquela esquina, manhã ainda, no compasso de cores que se intercalavam no semáforo, havia um vaivém de carros, gente apressada. Bicicletas e motos disputavam espaços…

Buzinaço. O coquetel de barulho estava diversificado… vruum! O barulho dos motores mais estressados avisam que o dia está começando para milhares de pessoas.

Para ela, não. Bem antes já estava atalhando o que sobrou de nossas casas, ao pé das calçadas. Fazia da vassoura seu instrumento de  trabalho, em meio a homens fardados como ela.

A bruma de uma madrugada diferente, fria, era o bafo final daquela chuva fininha que teimou em banhar a cidade durante tantas horas. Sentada à esquina, quem ligaria para ela?

A calçada alta lhe daria naturais proeminência e visibilidade. Mas o enxame de gente e veículos passava ao largo, a desdenhando. Quem ligaria para aquele espelho pequeno, escondido em sua mão, tirado à sorrelfa?

Mulher anônima, mais uma, ponta de estoque de uma sociedade de consumo, da ditadura da beleza, ela não podia ser vista ou notada, mesmo parada ali. Era apenas mais uma ou coisa nenhuma.

Seu empenho em não ser flagrada em dedicação à beleza, no culto à feminilidade, era um esforço desnecessário e pueril. Quem liga para uma gari, parada, em outro cruzamento movimentado de uma cidade que fica grande a cada dia, sem perder sua faceta de aldeia?

Da sarjeta sai o que sobrou dessa mesma sociedade, que parece não perceber sua existência, nem desperta para seu gênero. Sexo, menos ainda. É apenas uma gari, que por certo pode se perguntar ousadamente sem medo: "Espelho, espelho meu, existe mulher mais bonita do que eu?"

Antes da resposta, a pressa em devolver a intrigante peça ao esconderijo.

Creio que é um espelho achado entre as sobras do lixo no bairro nobre, agora resgatado para ser reflexo de outra dona. Outra mulher vaidosa, em busca da  perfeição, do elogio que lhe abrisse finalmente um sorriso em meio à labuta.

Em sua simplicidade e pobreza, estaria pronta para ser notada. Vênus ou Afrodite? Não importa. Uma deusa sem nome, metida numa farda azul e branco, constatando que mais um carro passava ao lado sem notá-la.

Vi-a em pedaços pelo espelho. Só. Uma maria-ninguém.

Distanciando-se, não percebi Vênus ou Afrodite no retrovisor embaciado do meu carro, que lentamente a escondeu mais ainda naquela esquina. Ficou para trás. Ela e seu espelho.

Compartilhe:
Categoria(s): Nair Mesquita

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.