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domingo - 27/06/2021 - 06:10h

Uma verdadeira história de amor

Por Marcos Araújo

Era o ano de 1953. Governava o Brasil o populista Getúlio Vargas. O país tinha 53 milhões de habitantes. Pela exigência do crescimento econômico e da tendência nacionalista do chamado Estado Novo, estradas eram abertas. Pessoas às centenas eram contratadas para trabalharem naquilo que popularmente chamavam de rodagens.

Aqui no Estado, o DER empreendia ligar Mossoró à Luis Gomes, numa estrada construída a braços humanos, sem qualquer aparato tecnológico ou mecânico. Foi por essa época que um magricelo acariense baixado há pouco tempo do Exército, com parentes fixados no Sítio Salva Vidas, listou-se entre os trabalhadores recrutados pelo Batalhão de Engenharia, a quem cabia a execução dessa obra. Acompanhado de três jegues, se aventurou nessa empreitada.Cropped shot of elderly couple holding hands outdoor at sunset. Focus on handsChapéu de palha, rosto curtido de sol, punha-se ele, com os seus companheiros de lida (os jumentos “brinquedo”, “bolinha” e “moreno”) a jogar barro e colocar água na pavimentação de uma pista que ligaria a cidade de Pau dos Ferros à José da Penha. Mal sabia ele que Deus, por desígnios da arquitetura celestial, empreendia ligar dois corações.

Não muito distante do local de trabalho daquele jovem, morava uma senhorita de sorriso largo, faceira, recém-chegada de uma temporada de estudos na cidade de Mossoró. Seu trabalho também era intenso, auxiliando o seu pai e sua mãe nas lidas do campo e do gado.

À noite e nos finais de semana, jovens de toda a região se dirigiam ao Terreiro de seu Augusto Holanda, Padrinho daquela moça, onde aconteciam animadas “valsas”. Em companhia de João de Peba e de Arimatéia, o jovem acariense  dava uma de seresteiro, querendo engalanar-se para as incautas moças ouvintes.

Foi por ali que se conheceram e às escondidas começaram um namoro. Ciosos de suas diferenças, apadrinharam-se de um rapaz paraplégico (Antídio Gurjão) para servir de mensageiro das juras e dos escritos de amor. Na cadeira de rodas do paraplégico, ou entre os seus dedos, eram deixados bilhetes um a outro destinados. Este arroubo juvenil durou por mais de um ano.

Numa certa noite, entenderam que não era possível mais sufocar o sentimento e, mesmo com a reprovação do pai dela, deveriam se unir. Foi preparada a fuga. Como a canção que ele tantas vezes entoara, numa noite de luar encantador, madrugada afora, rumaram ao desconhecido, mão na mão, e um destino incerto a depender apenas do amor e da paixão. No bolso do trabalhador fujão, apenas uns trocados. Nas coisas da moça, duas mudas de roupas.

Foi no Catolezinho, proximidades da cidade de José da Penha, que o casal foi encontrar guarida e abrigo amigo. Se impensado foi o gesto, retorno não mais haveria. Numa cerimônia simples, na tarde do dia 27 de abril de 1955, na Igreja de São João Batista, na cidade de Riacho de Santana, fizeram juras sacramentais de um amor recíproco.

Incompreendidos pela fuga e o casamento às escondidas, sofreram os augúrios de lutarem contra o rigor do pai da noiva, que rejeitava a união da filha a um homem desconhecido. Não arrefeceram… O amor era maior do que a intransigência de “Seu” Raimundo Rodrigues.

Ele, um boêmio e cantor nato, sábio e à frente do seu tempo, anuiu à vanguarda da esposa em independência no pensamento e liberdade de mando doméstico. Tiveram nove filhos, que por sua vez geraram perto de 40 netos. Os filhos foram educados entre sermões e cordadas no “lombo”, para quando a palavra não mais surtia efeito. Com os netos, foram lenientes. Sempre foram muito falantes e interativos dentro – e fora – de casa.

Já idosos e confinados, implicavam um com o outro até por distração. No jogo de cartas para passar o tempo, se acusavam reciprocamente de “roubar” no jogo.

Essa “aventura” de amor já se mantém há 67 anos. Não foi possível comemorar (e para eles, relembrar) a data pela primeira vez em todo esse tempo. Ela vinha padecendo de Alzheimer, em progresso lento, conservando reservada lucidez. Ele tinha muita saúde, até que sofreu um AVC vésperas da data-aniversário de casamento, comprometendo sua cognição, fala e atividade motora.

Agora, convivem e coexistem quase sem palavras. O mutismo de um, adoece ainda mais o outro. Ela queixa-se o tempo todo da doença que o torna indiferente. Ele, acompanha as reclamações com o seu olhar compreensivo de um eterno apaixonado.

A enfermidade não suprimiu a consciência da dependência sentimental. Ainda há brilho e luz na troca de olhares que só o amor proporciona.

Como filho, vivenciei algumas brigas entre eles, o que é perfeitamente natural. Como vivente nessa experiência humana, nunca testemunhei amor tão intenso quanto ao deles dois, meus pais, Ary e Clotilde, que protagonizaram (e ainda, relativamente, protagonizam!) uma verdadeira história de amor!

Marcos Araújo é professor e advogado

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Rocha Neto diz:

    Se seu Expedito e dona Conceição estivessem conosco fisicamente, hoje estariam celebrando 79 anos de um amor que os jovens de gerações recentes jamais irão entender em algum dia. Somos agradecidos a Deus que nos deu o privilégio de ter tido uns pais tão fortes, guerreiros e cheios de amor para dedicar não só à nos seus filhos, mais para com todos os de seu bem querer de amizades puras e sinceras, outras qualidades que já não mais existem hoje.
    Lendo sua perfeita crônica de hoje, caro amigo Marcos, me remeteu à décadas pretéritas quando o amor vividos por nossos pais Ari/Clotilde, Expedito/Conceição, realmente era o amor. Você tem a alegria de abraçar ainda hoje os seus heróis, com o afeto firme e forte, eu faço isto só com o coração e lembranças, pois os endereços dos meus heróis tem como nome de rua Céu, bairro Braços de Deus, numero todos de cada dia vivido. E mais uma vez plajeando o compositor Herivelto Martins, “O AMOR, É O AMOR”.

  2. Fernando diz:

    Esse romance se iguala ao de Romeu e Julieta, versão nordestina .

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